CAMILO &M VIANA
[1857: “velha” como “nova” (10)]
A freira que, em 1855, quis gozar, na companhia de Camilo, o mês
de setembro, nas vizinhanças de Viana; a freira que, um ano depois, tentou
impedir que este ainda seu amante viesse para esta cidade e aqui ocupasse o
cargo, remunerado, de redator do jornal A
Aurora do Lima; a freira que, via seu amigo querido, estabeleceu amizade
com os dois filhos mais novos da família Barbosa e Silva, tornando-se interessada
leitora de Viver para Sofrer, romance
do mais jovem, o José; a freira que, durante anos, foi dedicada e generosa
precetora de Bernardina Amélia, filha natural da relação adulterina entre
Camilo e Patrícia Emília; a freira que, terminada a paixão amorosa e o convívio
direto com o ex-amante, continuou sua amiga, apesar de ele se ir afastando cada
vez mais dela; a freira de quem, no “post”
anterior, fiz uma breve biografia, baseado, apenas, nas informações colhidas
nas cartas que o Escritor enviou ao seu grande amigo vianês José Barbosa e Silva
(JBS); a freira que...
Isabel
Cândida Vaz Mourão é o seu nome completo.
Isabel Cândida era irmã professa do Convento de S. Bento da Avé
Maria. O mosteiro situava-se, antes de ser demolido (finais do séc. XIX), onde
se encontra a atual estação ferroviária central do Porto (S. Bento), construída
nos princípios do séc. XX.
Das várias consultas bibliográficas efetuadas sobre esta monja
beneditina, não consegui apurar datas de nascimento e morte, de ingresso e
profissão na ordem, nem a naturalidade, nem, mesmo, os nomes dos pais. O
processo sobre a sua vida religiosa desapareceu. Alguém se encarregou (ou foi
encarregado) de o destruir. E com ele, ter-se-ão perdido dados sobre a sua vida.
Uma coisa é evidente: foi o seu amor a Camilo e à Bernardina Amélia que salvou
do anonimato esta religiosa.
Isabel Cândida não foi, como já o paciente leitor deduziu, uma soror exemplar. Respeitaria pouco as
regras monásticas. Terá sido repreendida, assim, por mau comportamento. Mas
dizem os biógrafos de Camilo, quando acerca dela escrevem, que era uma freira rica,
em moeda e bens, culta, que gostava de fazer versos e de conversar com poetas e
folhetinistas. Mas não só. Manuel
Tavares Teles, ao descrever o «estatuto social» do abastado e maduro brasileiro portuense Manuel Pinheiro
Alves (1807-1868), anota, em rodapé (com base no Periódico dos Pobres do Porto, de 29/09/1851) a «coincidência
curiosa» de os «dois primeiros directores» da Fundição Bicalho terem sido Bento
Luís Ferreira Carmo, que foi amante da freira Isabel Cândida Vaz Mourão, e
Manuel Pinheiro Alves, que foi marido de Ana Plácido.» [TELES, 2008: 181. Respeitada grafia da edição consultada.]
Não encontrei fotografias de Isabel Cândida. Houve, porém, um
autor que, tendo-a conhecido pessoalmente, dela nos deixou um singular retrato.
Alberto Pimentel (1849-1925), «amigo devotado de Camilo (com quem privou
intimamente)» e de quem foi o «primeiro biógrafo» [CABRAL, 20032:
605], revela ter-se encontrado, desde os 15 anos (1865), com a freira. Conta
ele que, em consequência do casamento de Bernardina Amélia (1865), a jovem
noiva abandonou o convento e a religiosa passou a ser professora de uma sua
prima, Aureliana Coelho Bragante. E Alberto Pimentel acrescenta:
«Muitas vezes acompanhei minha mãe e irmãs em
visita áquela nossa parenta, que nos recebia na grade com a freira e nos
regalava com rebuçados e bonbons.
Outras vezes eramos convidados a ir lá almoçar e então tambem ia comnosco meu
pai, que salvara minha prima em doenças graves e tinha mais clientes de partido
naquela comunidade. [//] Minha prima estimava ver-se rodeada de parentes,
ria de vontade com os ditos de meu pai […], e a freira D. Isabel Cândida conversava
com animação e espirito, contando casos do convento e casos da cidade, como se
conhecesse estes tão bem como aqueles.»
E logo de seguida, dá os retoques finais no
retrato da mãezinha (tratamento que
as educandas davam às monjas educadoras) da prima:
«Mas
a freira era velha e feia, trigueira, angulosa e alta, tinha a voz forte, um nariz
respeitável, e sombras de buço.»
O devotado biógrafo do Escritor estranha, por
isso, que «aquela mulher, tão balda de encantos feminis,
pudesse haver inspirado atenções afectuosas […] a um homem superior […] como Camilo
Castelo Branco. [PIMENTEL, 1921: 26-28. Respeitada grafia da edição consultada.)
Contudo, foi o que aconteceu.
Reciprocamente, embora esteja convencido de que, na balança deste amor, o prato
da freira pesasse mais que o de Camilo.
Os biógrafos situam o início das relações entre Isabel Cândida e Camilo,
em outubro de 1850. Viram-se no abadessado
ou outeiro dos dias 21 a 24 daquele
mês. Festejava-se, no mosteiro, a reeleição da abadessa Ana Delfina de Andrade.
[CABRAL, 1918: 96 e PIMENTEL, 1899: 145]. António Cabral, citando local
publicada, a 26, n’O Jornal do Povo,
diz que, naqueles dias de festa, com doces e vinhos servidos pelas criadas do
convento, foram «notadas as bellas poesias que recitaram os srs. Correa Leal, Camillo Castello-Branco,
[António Joaquim Xavier] Pacheco, [José Maria] Vieira e [António Frutuoso] Ayres
de Gouvêa [Osório]». [CABRAL, 1918: 96. Não consegui precisar o poeta Correa
Leal.] As freiras não se misturavam com os poetas. Assistiam das grades ao
sarau, lançando motes que eles desenvolviam, improvisando.
Na coletânea de poemas Inspirações,
publicada em 1851, Camilo inclui um poema dedicado «À Illm.ª e Exm.ª Snr.ª / D.
ANNA DELFINA D’ANDRADE. / ABADESSA RE-ELEITA / - Improviso - / No Mosteiro de
S. Bento da Ave Maria da Cidade / do Porto, em Outubro de 1850» [BRANCO, 1851:
78. Respeitada grafia da edição consultada.]
Isabel Cândida foi mais que uma segunda mãe, para a filha natural de
Patrícia Emília e Camilo, então jovens amantes (pouco mais teriam que vinte
anos de idade). A religiosa, terminada a relação amorosa com o Escritor,
continuou, todavia, a educar e a acompanhar, de perto, tanto dentro como fora
do convento, Bernardina Amélia. Até 29 de dezembro de 1865, dia em que a jovem,
com apenas 17 anos, casou com o abastado capitalista, regressado do Brasil, António
Francisco de Carvalho. A freira tratou de tudo. Através de carta [cf. PIMENTEL, 1890: 103], em que relevava
as qualidades e o estatuto social do noivo, Isabel Cândida, em nome da
Bernardina, pede à mãe natural da filha de Camilo que autorize o matrimónio.
Camilo opôs-se. Em vão.
O Escritor não se encontrava ainda recuperado, física, psicológica,
social e economicamente do processo de adultério e divórcio, desencadeado, em
1860, pelo marido de Ana Plácido. O escandaloso caso em que o pai da noiva se
tinha envolvido terá pesado na decisão da freira, em escrever à Patrícia
Emília, que entretanto passara a viver com um novo companheiro, Francisco José
Claro, em Vila Real.
É sabido que Camilo não aprovou, de início e durante anos, que a
filha casasse com o abastado brasileiro,
devido à diferença de idades, como confessa em carta que, datável de 20 de
julho de 1874, dirigiu ao Visconde de Ouguela (Carlos Ramiro Coutinho,
1830-1897):
«Amanhã vou ao Porto para acompanhar a minha filha e a minha neta
à Póvoa. Não sei se sabes que tenho uma filha e uma neta. O meu genro é um
argentário maior de 50 anos e de 200 contos. Impugnei este casamento, há 9
naos, receando que a diferença entre 16 e 40 anos abrisse um abismo entre os
cônjuges. Felizmente que a minha filha saiu uma criatura angelical, e o marido
é um excêntrico que a tem levado a viajar. Nunca falei com ele, desde que o vi
em 1849, sair para o Brasil. Era filho de um desembargador. Levou 20 contos do
seu património, e voltou rico. Viu a pequena na grade de um convento, e pediu-a
a uma freira que ele presumia ser mãe da noiva. Como eu me opusesse ao
casamento, solicitaram a licença da verdadeira mãe que existe em Vila Real, e
casaram-se. Passados anos, fui, muito instado, ver a minha filha a uma quinta
que habitava nos arrabaldes do Porto. Recebi-a na minha sege, e não lhe entrei
em casa. Agora, creio que falarei com o marido, atendendo a que ele quis que a
sua filha se chamasse Camila. É uma trigueirinha engraçada. Diz o Jorge que
sendo eu avô dela, vem ele Jorge a ser o pai. Isto parece racional.»
[MATOS, 2012: 164-165. Excerto. Respeitada grafia da edição consultada.]
Creio não ser necessário comentar. Apenas recordar que Jorge é o filho, doente metal, de Camilo e Ana Plácido.
Até ao próximo!
NB – As fotografias são arranjo de outras colhidas em Google /
Imagens / Convento de S. Bento da Avé Maria e Bernardina Amélia Castelo Branco.
Referências e outra
bibliografia consultada:
BARBOSA, L. Xavier, [1919]: Cem
Cartas de Camillo. Lisboa: Portugal-Brasil Limitada, Sociedade Editora.
BRANCO, Camillo Castello, 1851: Inspiraçoens. Porto: Typographia de J. J. Gonçalves Basto.
CABRAL, Alexandre Cabral, 1984: Correspondência de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva
– I. (Escolha, prefácio e comentários de)- Lisboa: Horizonte.
------------, 1984: Correspondência
de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva e com Sebastião de Sousa–
II. (Escolha, prefácio e comentários de)- Lisboa: Horizonte.
------------, 20032: Dicionário de Camilo Castelo Branco (ed. Revista e aumentada).
Lisboa: Caminho.
CABRAL, António, 1918: Camillo
Desconhecido. Lisboa: Livraria Ferreira, Lda.
FIGUEIRAS, Paulo de Passos, 2010: «Camilo e Ana Plácido – Alguns factos
inéditos da sua vida». Cadernos Vianenses, Tomo 44. Viana do Castelo: Câmra
Municipal de Viana do Castelo; pp. 229-255.
MATOS, A. Campos,
2012: Camilo Íntimo – Cartas
inéditas de Camilo Castelo Branco ao visconde de Ouguela.
(Pref. de […] e posf. de João Bigotte Chorão). Lisboa. Clube do Autor.
pIMENTEL, alberto, 1890: O Romance
do Romancista – Vida do Camillo Castello Branco. Lisboa: Francisco Pastor.
------------, 1899: Os Amores de Camillo (Dramas intimos colhidos na biografia de um grande
escriptor). Lisboa: Libanio & Cunha
------------, 1921: O Torturado de Seide (Camilo Castelo Branco). Lisboa: Livraria de
Manoel dos Santos.
RIBEIRO, Aquilino, 1961: O Romance de Camilo (3 vols.). Bertrand: Amadora.
TELES, Manuel Tavares, 2008: Camilo e Ana Plácido - Episódios ignorados da célebre paixão romântica. Porto: Caixotim.
CORRIGENDA (02-06-2017) - A "criança" Bernardina Amélia, reproduzida na fotografia acima, teria 5 e não ao anos. Peço desculpa.
CORRIGENDA (02-06-2017) - A "criança" Bernardina Amélia, reproduzida na fotografia acima, teria 5 e não ao anos. Peço desculpa.
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