quarta-feira, 24 de maio de 2017

CAMILO &M VIANA
[1857: “velha” como “nova” (10)]


A freira que, em 1855, quis gozar, na companhia de Camilo, o mês de setembro, nas vizinhanças de Viana; a freira que, um ano depois, tentou impedir que este ainda seu amante viesse para esta cidade e aqui ocupasse o cargo, remunerado, de redator do jornal A Aurora do Lima; a freira que, via seu amigo querido, estabeleceu amizade com os dois filhos mais novos da família Barbosa e Silva, tornando-se interessada leitora de Viver para Sofrer, romance do mais jovem, o José; a freira que, durante anos, foi dedicada e generosa precetora de Bernardina Amélia, filha natural da relação adulterina entre Camilo e Patrícia Emília; a freira que, terminada a paixão amorosa e o convívio direto com o ex-amante, continuou sua amiga, apesar de ele se ir afastando cada vez mais dela; a freira de quem, no “post” anterior, fiz uma breve biografia, baseado, apenas, nas informações colhidas nas cartas que o Escritor enviou ao seu grande amigo vianês José Barbosa e Silva (JBS); a freira que...
Isabel Cândida Vaz Mourão é o seu nome completo.


Isabel Cândida era irmã professa do Convento de S. Bento da Avé Maria. O mosteiro situava-se, antes de ser demolido (finais do séc. XIX), onde se encontra a atual estação ferroviária central do Porto (S. Bento), construída nos princípios do séc. XX.
Das várias consultas bibliográficas efetuadas sobre esta monja beneditina, não consegui apurar datas de nascimento e morte, de ingresso e profissão na ordem, nem a naturalidade, nem, mesmo, os nomes dos pais. O processo sobre a sua vida religiosa desapareceu. Alguém se encarregou (ou foi encarregado) de o destruir. E com ele, ter-se-ão perdido dados sobre a sua vida. Uma coisa é evidente: foi o seu amor a Camilo e à Bernardina Amélia que salvou do anonimato esta religiosa.

Isabel Cândida não foi, como já o paciente leitor deduziu, uma soror exemplar. Respeitaria pouco as regras monásticas. Terá sido repreendida, assim, por mau comportamento. Mas dizem os biógrafos de Camilo, quando acerca dela escrevem, que era uma freira rica, em moeda e bens, culta, que gostava de fazer versos e de conversar com poetas e folhetinistas. Mas não só. Manuel Tavares Teles, ao descrever o «estatuto social» do abastado e maduro brasileiro portuense Manuel Pinheiro Alves (1807-1868), anota, em rodapé (com base no Periódico dos Pobres do Porto, de 29/09/1851) a «coincidência curiosa» de os «dois primeiros directores» da Fundição Bicalho terem sido Bento Luís Ferreira Carmo, que foi amante da freira Isabel Cândida Vaz Mourão, e Manuel Pinheiro Alves, que foi marido de Ana Plácido.» [TELES, 2008: 181. Respeitada grafia da edição consultada.]

Não encontrei fotografias de Isabel Cândida. Houve, porém, um autor que, tendo-a conhecido pessoalmente, dela nos deixou um singular retrato. Alberto Pimentel (1849-1925), «amigo devotado de Camilo (com quem privou intimamente)» e de quem foi o «primeiro biógrafo» [CABRAL, 20032: 605], revela ter-se encontrado, desde os 15 anos (1865), com a freira. Conta ele que, em consequência do casamento de Bernardina Amélia (1865), a jovem noiva abandonou o convento e a religiosa passou a ser professora de uma sua prima, Aureliana Coelho Bragante. E Alberto Pimentel acrescenta:

«Muitas vezes acompanhei minha mãe e irmãs em visita áquela nossa parenta, que nos recebia na grade com a freira e nos regalava com rebuçados e bonbons. Outras vezes eramos convidados a ir lá almoçar e então tambem ia comnosco meu pai, que salvara minha prima em doenças graves e tinha mais clientes de partido naquela comunidade. [//] Minha prima estimava ver-se rodeada de parentes, ria de vontade com os ditos de meu pai […], e a freira D. Isabel Cândida conversava com animação e espirito, contando casos do convento e casos da cidade, como se conhecesse estes tão bem como aqueles.»

E logo de seguida, dá os retoques finais no retrato da mãezinha (tratamento que as educandas davam às monjas educadoras) da prima:

«Mas a freira era velha e feia, trigueira, angulosa e alta, tinha a voz forte, um nariz respeitável, e sombras de buço.»

O devotado biógrafo do Escritor estranha, por isso, que «aquela mulher, tão balda de encantos feminis, pudesse haver inspirado atenções afectuosas […] a um homem superior […] como Camilo Castelo Branco. [PIMENTEL, 1921: 26-28. Respeitada grafia da edição consultada.)
Contudo, foi o que aconteceu. Reciprocamente, embora esteja convencido de que, na balança deste amor, o prato da freira pesasse mais que o de Camilo.

Os biógrafos situam o início das relações entre Isabel Cândida e Camilo, em outubro de 1850. Viram-se no abadessado ou outeiro dos dias 21 a 24 daquele mês. Festejava-se, no mosteiro, a reeleição da abadessa Ana Delfina de Andrade. [CABRAL, 1918: 96 e PIMENTEL, 1899: 145]. António Cabral, citando local publicada, a 26, n’O Jornal do Povo, diz que, naqueles dias de festa, com doces e vinhos servidos pelas criadas do convento, foram «notadas as bellas poesias que recitaram os srs. Correa Leal, Camillo Castello-Branco, [António Joaquim Xavier] Pacheco, [José Maria] Vieira e [António Frutuoso] Ayres de Gouvêa [Osório]». [CABRAL, 1918: 96. Não consegui precisar o poeta Correa Leal.] As freiras não se misturavam com os poetas. Assistiam das grades ao sarau, lançando motes que eles desenvolviam, improvisando.

Na coletânea de poemas Inspirações, publicada em 1851, Camilo inclui um poema dedicado «À Illm.ª e Exm.ª Snr.ª / D. ANNA DELFINA D’ANDRADE. / ABADESSA RE-ELEITA / - Improviso - / No Mosteiro de S. Bento da Ave Maria da Cidade / do Porto, em Outubro de 1850» [BRANCO, 1851: 78. Respeitada grafia da edição consultada.]


Isabel Cândida foi mais que uma segunda mãe, para a filha natural de Patrícia Emília e Camilo, então jovens amantes (pouco mais teriam que vinte anos de idade). A religiosa, terminada a relação amorosa com o Escritor, continuou, todavia, a educar e a acompanhar, de perto, tanto dentro como fora do convento, Bernardina Amélia. Até 29 de dezembro de 1865, dia em que a jovem, com apenas 17 anos, casou com o abastado capitalista, regressado do Brasil, António Francisco de Carvalho. A freira tratou de tudo. Através de carta [cf. PIMENTEL, 1890: 103], em que relevava as qualidades e o estatuto social do noivo, Isabel Cândida, em nome da Bernardina, pede à mãe natural da filha de Camilo que autorize o matrimónio. Camilo opôs-se. Em vão.
O Escritor não se encontrava ainda recuperado, física, psicológica, social e economicamente do processo de adultério e divórcio, desencadeado, em 1860, pelo marido de Ana Plácido. O escandaloso caso em que o pai da noiva se tinha envolvido terá pesado na decisão da freira, em escrever à Patrícia Emília, que entretanto passara a viver com um novo companheiro, Francisco José Claro, em Vila Real.

É sabido que Camilo não aprovou, de início e durante anos, que a filha casasse com o abastado brasileiro, devido à diferença de idades, como confessa em carta que, datável de 20 de julho de 1874, dirigiu ao Visconde de Ouguela (Carlos Ramiro Coutinho, 1830-1897):

«Amanhã vou ao Porto para acompanhar a minha filha e a minha neta à Póvoa. Não sei se sabes que tenho uma filha e uma neta. O meu genro é um argentário maior de 50 anos e de 200 contos. Impugnei este casamento, há 9 naos, receando que a diferença entre 16 e 40 anos abrisse um abismo entre os cônjuges. Felizmente que a minha filha saiu uma criatura angelical, e o marido é um excêntrico que a tem levado a viajar. Nunca falei com ele, desde que o vi em 1849, sair para o Brasil. Era filho de um desembargador. Levou 20 contos do seu património, e voltou rico. Viu a pequena na grade de um convento, e pediu-a a uma freira que ele presumia ser mãe da noiva. Como eu me opusesse ao casamento, solicitaram a licença da verdadeira mãe que existe em Vila Real, e casaram-se. Passados anos, fui, muito instado, ver a minha filha a uma quinta que habitava nos arrabaldes do Porto. Recebi-a na minha sege, e não lhe entrei em casa. Agora, creio que falarei com o marido, atendendo a que ele quis que a sua filha se chamasse Camila. É uma trigueirinha engraçada. Diz o Jorge que sendo eu avô dela, vem ele Jorge a ser o pai. Isto parece racional.»
[MATOS, 2012: 164-165. Excerto. Respeitada grafia da edição consultada.]

Creio não ser necessário comentar. Apenas recordar que Jorge é o filho, doente metal, de Camilo e Ana Plácido.
Até ao próximo!

NB – As fotografias são arranjo de outras colhidas em Google / Imagens / Convento de S. Bento da Avé Maria e Bernardina Amélia Castelo Branco.

Referências e outra bibliografia consultada:
BARBOSA, L. Xavier, [1919]: Cem Cartas de Camillo. Lisboa: Portugal-Brasil Limitada, Sociedade Editora.
BRANCO, Camillo Castello, 1851: Inspiraçoens. Porto: Typographia de J. J. Gonçalves Basto.
CABRAL, Alexandre Cabral, 1984: Correspondência de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva – I. (Escolha, prefácio e comentários de)- Lisboa: Horizonte.
------------, 1984: Correspondência de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva e com Sebastião de Sousa– II. (Escolha, prefácio e comentários de)- Lisboa: Horizonte.
------------, 20032: Dicionário de Camilo Castelo Branco (ed. Revista e aumentada). Lisboa: Caminho.
CABRAL, António, 1918: Camillo Desconhecido. Lisboa: Livraria Ferreira, Lda.
FIGUEIRAS, Paulo de Passos, 2010: «Camilo e Ana Plácido – Alguns factos inéditos da sua vida». Cadernos Vianenses, Tomo 44. Viana do Castelo: Câmra Municipal de Viana do Castelo; pp. 229-255.
MATOS, A. Campos, 2012: Camilo Íntimo – Cartas inéditas de Camilo Castelo Branco ao visconde de Ouguela. (Pref. de […] e posf. de João Bigotte Chorão). Lisboa. Clube do Autor.
pIMENTEL, alberto, 1890: O Romance do Romancista – Vida do Camillo Castello Branco. Lisboa: Francisco Pastor.
------------, 1899: Os Amores de Camillo (Dramas intimos colhidos na biografia de um grande escriptor). Lisboa: Libanio & Cunha
------------, 1921: O Torturado de Seide (Camilo Castelo Branco). Lisboa: Livraria de Manoel dos Santos.
RIBEIRO, Aquilino, 1961: O Romance de Camilo (3 vols.). Bertrand: Amadora.
TELES, Manuel Tavares, 2008: Camilo e Ana Plácido - Episódios ignorados da célebre paixão romântica. Porto: Caixotim.

CORRIGENDA (02-06-2017) - A "criança" Bernardina Amélia, reproduzida na fotografia acima, teria 5 e não ao anos. Peço desculpa.

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