sábado, 29 de novembro de 2014

017. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [14]

         em Duas Horas de Leitura (1857) [IV]



 Ora prosseguindo na apresentação das referências faz aos irmãos Barbosa e Siva (Luís e José), na crónica «Do Porto a Braga», incluída em Duas Horas de Leitura [cf. aqui], veja o leitor amigo o Camilo nos diz, no capítulo III.

Depois de nos descrever as razões por que se considerava «um grande bucólico de estufa» [Branco, 18582: 103], por um lado, e, por outro, se referir à influência das belezas naturais que, segundo as estações do ano, inspiram os poetas, o Escritor avança, a caminho da consulta que, à exceção de Evaristo Basto, iam fazer, em Famalicão, a um tal «bacharel formado em lombrigas». Meditabundos e cansados da viagem iriam os quatro. Sobretudo depois de terem saboreado, na Carriça, os prazeres  gastronómicos e outros de uma tal Mariquinhas.


«[...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...]
Não obstante, na qualidade de viajante, logo que o horisonte se dilatou diante do carro, e os galões sobre melhor pizo diminuiram, aventurei a cabeça fóra das bambinellas para saudar o sol poente.
Ha doze annos, foi aquella a minha hora de poesia. As minhas tristezas doces, os meus confusos devaneios, a minha costella de Petrarcha sem Laura, tive-a então. Hoje acontece-me o que é natural. Vejo, e vi o sol no occidente, pelos olhos da face que pouco vêem de enfraquecidos pelas repetidas ophtalmias dos olhos da alma. O que fiz foi consultar o relogio para calcular o tempo que nos levaria a caminhada á Carriça. Os meus companheiros, mais poetas que eu, iam taciturnos; não é liquido, porém, ainda se o seu silencio era tedio ou poesia.
J[osé] B[arbosa e Silva] quebrou a lethargia, perguntando:
“O homem da bicha está em Villa-Nova? [“]
— É natural — disse E[varisto] B[asto].
Esta pergunta, leitor, devia matar, se ella existisse, toda a poesia da hora, do local, e das circumstancias. Desde aquelle momento, os pinheiros, que bordam a estrada, affiguraram-se-me bichas solitarias; as listas rubidas do arrebol eram tenias; tenias eram os frocos dispersos de pequenas nevoas que se esvahiam no horisonte; e o homem, terror d'esta rainha das lombrigas, pareceu-me, de longe, um mytho.
Deveis saber que L[uís Barbosa e Silva], J. B., e eu imaginamos que alojavamos no intimo das entranhas, cada um, pelo menos, sua tenia. E.B., imaginou tambem que a tinha em casa. Todos quatro combinamos um plano de ataque contra a alimaria que nos devorava os sucos. E. B. prevenira o bacharel formado em lombrigas para que nos esperasse em Villa-Nova; e, para nós, era infallivel, horas depois, estarmos em lucta com o entezoairo cestoide, tœnia cucurbitania de Lamarck.
E assim, antevendo uma velhice sadia, graças á extracção do parasita, saudavamos as boas digestões, um sangue mais puro, um espirito mais desempeçado das roscas do verme, e, sobre tudo, um tecido adiposo que nos habilitasse a exercer, sem desdouro, os cargos do municipio, ou a presidencia de uma junta de parochia illustrada.
Nestas gravissimas reflexões, chegamos á Carriça, e apeamos. A primeira pessoa que vimos foi a Mariquinhas, merendando, salvo erro, uma lourejante posta de pescada fritada em ovos.
[…   …   …   …   …   …   …   …   …   …   …]
Anoiteceu. Saudades amargas da minha cama cobriam-me o coração de crepe. O meu barrete de dormir alvejou-me no horisonte escuro, como um sonho da virgem em ancias por ente querido que se lhe perde. Reclinei a fronte calcinada sobre o peito, e meditei em profundo recolhimento sobre as minhas alparcatas. A intensidade desta angustia não hão-de os homens entendêl-a, nesta épocha de cascalho e mala-posta.
Quando a esta terra vierem barbaros com coração ainda virgem da lepra dos interesses materiaes, haverá então quem comprehenda as attribulações do viajeiro a cabecear do somno. Guardo para esses o entendimento do jubilo com que ouvi dizer:
“Estamos em Villa Nova.”
Ao mesmo tempo, exclamou o tendeiro inquilino nos baixos da hospedaria:
“O homem já cá está em cima.”
— Quem é o homem? — perguntei eu alvoroçado.
“O homem da bicha” — replicou o auspicioso tendeiro.
Na physionomia dos tres, que se imaginavam supplementares á tenia, raiou a luz da esperança.
Subimos pressurosos á sala da consulta.
Agora o vereis.»

[Branco, 18582: 103-107]

       Pois é, mas isso é o que meu amigo verá / lerá no próximo post. Camilo termina estrategicamente neste ponto o terceiro capítulo. A «história da ténia» continua nos próximos caps. do livro e, logicamente, nos próximos posts deste blogue.


Leituras:
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
RODRIGUES, D. F., 2014: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [I]. AQUI
-----------, 2014a: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [II]. AQUI.
-----------, 2014b: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [III]. AQUI.

NB - Nas transcrições e citações foi respeitada a grafia das edições consultadas.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   [Continuará]

domingo, 23 de novembro de 2014

016. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [13]

          em Duas Horas de Leitura (1857) [III]




Apresentei, no post anterior, «o vulto moral» de L. B. [Luís Barbosa e Silva], descrito por Camilo, no capítulo II, da crónica «Peregrinação sobre a Face do Globo» / «Do Porto a Braga» [ver aqui]. O Escritor faz, em seguida, o retrato psicológico de E. B. [Evaristo Basto], de quem era amigo «há oito anos, e o mais antigo de todos» [Branco, 18582: 97; ver Cabral, 1989: 58-59]. Deixarei este E. B. de parte, por não ser de Viana. O último companheiro da «peregrinação» a ser retratado é J. B. [José Barbosa e Silva], irmão de Luís Barbosa e Silva, e cujos dados biográficos tenho vindo a referir, em vários posts deste blogue. Para eles remeto, por isso.
[Todavia, sínteses da sua vida a nível familiar, político e social, a par das suas íntimas relações de amizade com o Escritor, encontram-se também em Cabral, 1989: 51-53, 1984 (I): 33-42, Teles, 2007: 376-377, e Vasconcelos, 1991 e 1999. Além disso, é fundamental conhecer a imensa correspondência que Camilo enviou a José Barbosa e Silva e seus irmãos Luís e Mateus, publicada por Cabral, 1984 (I) e (II), e parte por Barbosa, 1919 e por Teles 2008. Pena é que a correspondência de José Barbosa e Silva para Camilo tenha sido destruída.]



Passemos, então, ao «vulto moral» de José Barbosa e Silva (1828-1865), segundo Camilo, em Duas Horas de Leitura, narrativa «Do Porto a Braga», passeio, recorde-se, realizado no ano de 1856, tinham Camilo e Luís Barbosa e Silva 31 anos de idade e José 28.

«J[osé] B[arbosa e Silva].
LÊSTES VIVER PARA SOFFRER? Se tivestes o tacto de respigar n'um livro, aqui e alli, o coração do author, achal-o-hieis. Não vos quero denunciar aonde, porque a amizade não dá azo a tanto. Surprehendam-no lá, se podem; que eu lh'o diga, não. Vede a physionomia serena deste homem: envejar-lhe-heis a paz intima, o recolhimento ditoso em que parece adormecida aquella alma, no seio da bemaventurança. Não o julgueis assim. Lá dentro vão tempestades como as dos bellos lagos de Italia, que se não bolem sequer agora, á crispação de uma briza, e tem dentro a vaga que logo se levanta com o dorso irriçado de tormentas. Alli não está só o poeta que vive

Morrendo por um nada,
Que desejado afllige, e havido enfada. (*)

Ha mais, ha o peior das chimeras mortas, o veneno d'ellas que fica, depois que o verme da saudade lhes sorveu os succos bons. E d'ahi, aquella immersão em tristeza profunda, d'onde não ha salval-o, sem que a sezão tenha cumprido sua phase. Noite alta, a insomnia trava-lhe da imaginação affogueada, e o visinho do seu quarto, ao amanhecer, escuta os passos monotonos do authomato, que se move, em quanto a alma, desatada do corpo, corre triste fadario. Não sabeis de certo o que é o enojo da vida, sem desejar a morte, porque a zombaria da esperança cava-nos abysmos, e, se nos vê em perigo de resvalar, transforma-nol-os em flores, mas flores com espinhos sempre. Oh! meu Deus! não é melhor ir com os olhos postos nas estrellas, e cahir de chofre em um poço, como o phylosopho grego?! Este morrer a retalhos, para nós que não somos ténias, é sobremaneira indecoroso!
Não cuideis, porém, que J. B. é algum Manfredo de faces cavadas e cabellos hirtos, como elle se pinta nas edições illustradas de L. Byron. Maravilha é vêl-o, no baile, modêlo de obsequiosas finezas ás damas, e esmerando-se em não esquecer os cavalheiros. O sorriso de convenção, o ademane cultivado lá fóra em alguns annos de viagens, obedecem-lhe sempre, e dão-lhe um ar de contentamento que muito deve penhorar os donos da casa; e assim é bom para que não fiquem só penhorados os que se retiram, já que os jornaes não permittem outra coisa.
J. B., officioso por educação, conhece que não póde furtar-se aos obsequios com que a sua ampla roda procura galardoar-lhe o merecimento.
N'esta tarefa, de que Deus me livre pela sua infinita misericordia, consome J. B. muitas horas que precisaria, se a litteratura não entrasse na sua educação simplesmente como ornato. Não obstante, a applicação, a paciencia, e a vontade tenaz, n'outra épocha, fizeram que elle, aos vinte e oito annos, conheça linguas e a litteratura de cada uma, tanto quanto a sua modestia, e algumas vezes a sua indole acanhada, fazem por esconder aos que o não têem acompanhado no seu progressivo desenvolvimento.
Ahi estão os meus companheiros.
Agora, ides de certo pasmar, se eu vos disser que nenhum d'elles é sequer, commendador!»

(*) F. d'Alvares do Oriente. [Nota de C. C. B.]

[Branco, 18582: 97-98]


Além de político do partido liberal (deputado, por Viana do Castelo e adido em Paris, entre outros cargos) José Barbosa e Silva dedicou-se também às letras (poesia, romance e jornalismo). Camilo apoiava e incentivava esta atividade do amigo vianês, promovendo-lhe a publicação, em jornais do Porto e de Lisboa, de poemas, crónicas e, em folhetins, o romance Viver para Sofrer (1855). Dedicado aos irmãos e subintitulado Estudos do Coração, este romance, com benevolente prefácio de Camilo (pp. 5-16), apesar de impresso nunca chegou, porém, a entrar no mercado. Como se sabe, a abastada família Barbosa e Silva e, em particular, o José, eram o pronto socorro a que o Escritor frequentemente recorria, nos seus apertos financeiros ou estados psicológicos de abatimento.
Camilo integrou, depois, o prefácio de Viver para Soffrer, no volume Esboços de Apreciações Litterarias (1865: 39-49).


Oportunamente, dedicarei um post (ou mais) ao Viver para Sofrer – Estudos do Coração. Entretanto, em próximo(s) post(s) continuarei a apresentar referências aos irmãos Barbosa e Silva em Duas Horas de Leitura.





Leituras:
BARBOSA, L. X. 1919: Cem Cartas de Camilo. Lisboa: Imprensa Portugal-Brasil.
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
-----------, 1865: Esboços Esboços de Apreciações Litterarias. Porto: Viuva Moré, Editora.
CABRAL, A., 1984: Correspondência de Camilo Castelo Branco com os irmãos Barbosa e Silva [I] e com Sebastião de Sousa [II]. Lisboa: Horizonte.
----------- 1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho. (2.ª ed., 2003)
SILVA, J. B., 1855: Viver para Soffrer. Estudos do Coração. Porto: Typ. de J. J. Gonçalves Basto.
TELES, M. T., 2007: Os Manuscritos Gertrudes. Uma portuense apaixonada por Camilo. Lisboa: Guerra e Paz.
-----------, 2008: Camilo e Ana Plácido – Episódios ignorados da célebre paixão romântica. S/l: Caixotim Edições.
VASCONCELOS, Maria Emília Sena de, 1991: «Os Barbosa e Silva, de Viana, e Camilo». Cadernos Vianenses, Tomo XV. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 111-127. Disponível também AQUI.
----------- 1999: Velhos vultos de Viana». Cadernos Vianenses, Tomo XXV. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 45-54. Disponível também AQUI.

NB - Nas transcrições e citações foi respeitada a grafia das edições consultadas.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                     [Continuará]

sábado, 15 de novembro de 2014

015. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [12]

          em Duas Horas de Leitura (1857) [II]



              No capítulo II, da crónica «Peregrinação sobre a Face do Globo» / «Do Porto a Braga» [ver post anterior], Camilo traça «o vulto moral» dos seus companheiros de viagem. O primeiro de quem faz o retrato, sobretudo psicológico, é L. B. [Luís Barbosa e Silva]. Segue-lhe E. B. [Evaristo Basto] e, por último, J. B. [José Barbosa e Silva].
            Em posts editados ou referenciados [ver AQUI] neste blogue, abordei já, por várias vezes, dados biográficos sobre a abastada família vianesa Barbosa e Silva, em particular, sobre o filho mais novo, José, o grande amigo do Escritor.
            Acrescentarei, agora, alguns dados sobre a vida de L. B. Dados mais desenvolvidos sobre esta família encontrará o interessado em Vasconcelos, 1991 e 1999, e Cabral, 1989: 51-54.
            Fazendo uma breve biografia de L. B., Alexandre Cabral regista, entre outros, os seguintes dados:

«Luís Barbosa e Silva (1825-1892), como o seu irmão mais novo, foi íntimo amigo de C. C. B., com quem aliás, depois da morte do benjamim (José Barbosa), manteve relações epistolares. Figura preponderante da sociedade vianense, dedicou-se particularmente ao comércio. Na verdade, o clã Barbosa e Silva, com outras famílias influentes, dominavam por completo a vida social de Viana do Castelo, inclusive a política.
[…]
Existe na Casa-Museu de Camilo, em São Miguel de Ceide, um lote de 13 cartas de L. B. e S. a C. C. B., que abarca os anos de 1877 a 1886. Encontramos numa delas informações interessantes sobre o guerrilheiro espanhol D. Santiago Garcia e Mendonça e o período conturbado de 1846. Camilo recorria a uma fonte segura para a recolha de elementos destinados à sua obra Maria da Fonte. Com efeito, Luís Barbosa e Silva, à data do surto revolucionário, era tenente da 5.ª companhia do batalhão fixo em Viana.» [Cabral, 1989: 53]

Alexandre Cabral, por outro lado, reuniu e publicou 24 cartas de C. C. B para L. B. S., seguida cada uma de breve comentário, sendo a primeira datada de 27-05-1857 e a última datável de 25-07-1885 [cf. Cabral, 1984 (II): 130-158].

Eis, agora, o «vulto moral» que o Escritor traça de Luís Barbosa e Silva, no cap. II da narrativa «Do Porto a Braga», incluída em Duas Horas de Leitura:

«L. B. é o typo completo da estremada bondade. Obriga-vos a estimal-o, antes de vos dar de si e das suas qualidades uma ideia justa pela convivencia, e pelo tracto. Tem a alma no semblante. A delicadeza com que vos acolhe chega a ser carinho, sem effeminação, sem o nauseento melindre dos affectados das salas, que julgam estar sempre em trocadilho de finezas com mulheres tôlas. Tem trinta annos, e falla-vos com a madureza dos cincoenta. Não é porque as paixões da mocidade o envelhecessem prematuramente. L B., a meu vêr, rebate os golpes do amor, que incommoda, com o escudo da prudencia. Domina-o a cabeça mais que o coração, se estas duas potencias travam peleja. São em pequeno numero os dotados deste temperamento; e, se a excepção, com o andar dos tempos, viesse a ser regra, a humanidade seria um congresso de anjos, e os fazedores de romances e dramas sanguinarios podiam tractar d'outra vida.
L. B. falla pouco, e nem sempre escuta os que lhe fallam. Abstrae-se, e, para não desconsolar o fallador, dá á cabeça o movimento regular d'uma pendula. Se lhe contaes aventuras de rapaz, escuta-vos com religiosa attenção; mas não espereis uma revelação por outra. O mais que faz é rir-se comvosco das vossas veleidades, e alguma vez da fatuidade com que irriçaes a juba do leão. Não julgueis que o seu sorriso é de credulidade. A bondade não tolhe os foros da critica. L. B. conhece perfeitamente os parvos, e, sabendo em que mundo está, tem o bom siso de os respeitar. Sem isso, elle não teria cathalogado uma excellente collecção de anecdotas contemporaneas, que traz frisantes e salgadas sempre, sem descobrir a creatura ridicula dellas. Resta-me dizer-vos, com grande espanto vosso, que L. B. não é litterato, nem dramathurgo, nem jornalista, nem se quer poeta! Falla e escreve um portuguez chão, desenfeitado, correcto, e claro como a sua physionomia, como as suas intenções, como a sua excellente alma. Homem — e diz-se tudo assim — que lhe merecer a amizade, tem encontrado as delicias de Seneca, o thesouro de Sancto Agostinho, e a pedra philosophal do seculo XIX.
[Branco, 18582: 93-94]

NB1 – Na transcrição foi respeitada a grafia da edição consultada.
NB2 – As fotografias acima reproduzidas foram retiradas de Vasconcelos, 1991: 115 (L. B. S.) e 121 (C. C. B.)

Leituras:
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
CABRAL, A., 1984: Correspondência de Camilo Castelo Branco coms os irmãos Barbosa e Silva e com Sebastião de Sousa (Vol. II). Lisboa: Horizonte.
----------- 1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho. (2.ª ed., 2003)
VASCONCELOS, Maria Emília Sena de, 1991: «Os Barbosa e Silva, de Viana, e Camilo». Cadernos Vianenses, Tomo XV. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 111-127. Disponível também AQUI.
----------- 1999: Velhos vultos de Viana». Cadernos Vianenses, Tomo XXV. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 45-54. Disponível também AQUI.


[Continuará]

sábado, 8 de novembro de 2014

014. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [11]

          em Duas Horas de Leitura (1857) [I]



Um dos textos onde Camilo mais longamente se refere aos irmãos Luís (1825-1892) e José Barbosa e Silva (1828-1865), naturais de Viana do Castelo, é em «Do Porto a Braga», publicado, juntamente com outras pequenas narrativas ou crónicas, em Duas Horas de Leitura. A primeira edição desta coletânea saiu em 1857 e nela o Escritor incluíra apenas, além da narrativa referente à viagem, também «Dous Santos não Beatificados em Roma». Na segunda edição, saída no ano seguinte, acrescenta-lhe mais duas: «Impressão Indelével (1842)» e «Sete de Junho de 1849».
As quatro narrativas foram publicadas, primeiramente, em folhetins de jornais, nomeadamente em A Aurora do Lima, jornal vianês cujo primeiro número veio a público em 15 de dezembro de 1855. Os «Dous Santos» apareceu apenas no jornal portuense O Clamor Público (em finais de outubro de 1856), mas cujo título completo era então «Dous Santos dos Que Se não Fazem em Roma». Por sua vez, «Do Porto a Braga», mas com o irónico título inicial de «Peregrinação sobre a Face do Globo», foi sendo publicado, durante o ano de 1856, no jornal portuense A Verdade, primeiro, e republicado, depois, em O Clamor Público (setembro) e n’A Aurora (outubro). Neste jornal foram publicadas, pela primeira vez, «Impressão Indelével (1842)», em finais de abril de 1857 e «Sete de Junho de 1849», em meados de junho do mesmo ano.
À exceção de «Dois Santos», Camilo refere-se aos dois irmãos Barbosa e Silva nas outras três narrativas, mas só o José aparece sempre nas três; o Luís é referido apenas em «Peregrinação sobre a Face do Globo» / «Do Porto a Braga». Os dois irmãos são referidos apenas pelas iniciais dos respetivos nome e primeiro apelido. Além destes, fazia parte também da comitiva E. B., ou seja, Evaristo Basto (1821-1865), natural do Porto, onde desenvolveu atividade política e jornalística, apesar de formado em direito. A ele também o Escritor se refere, longa e amigavelmente.

Creio não ser necessário resumir esta breve narrativa. Por duas razões. Primeira: não quero correr o risco de afastar o leitor de apreciar com prazer e humor Duas Horas de Leitura. Segunda: as passagens a transcrever e sua co(n)textualização, ainda que breve, acabará por fornecer dados que contribuirão para que o leitor faça uma ideia, ainda que incompleta, do que foi o passeio que os quatro viajeiros fizeram do Porto a Braga, cujo destina final era o Bom Jesus. Mas com uma paragem em Famalicão, para pernoita e saberem se tinham ou não a bicha solitária, através da consulta de um «doutor», especialista em ténias. 
Camilo só começa a descrever o «vulto moral» dos seus companheiros e as peripécias em que, isoladamente ou em conjunto, intervêm, a partir do cap. II. Mas logo no cap. I, fornece-nos alguns dados sobre cada um deles, bem como os preparativos e o meio de transporte utilizado. Ficar-me-ei, hoje, pelas transcrições do primeiro capítulo a esse respeito.


        […   …   …   …   …   …   …   …   …   …   …   …   …   …   …   …   …   …]

Eram 5 horas da tarde de 26 de Junho de 1856, quando nos reunimos quatro homens, que, nascidos na Gran-Bretanha, teriamos morrido onde morreu Franklin: tal é a aspiração que sentimos para o desconhecido, e a ancia que nos rala de não sermos contemporaneos do infante D. Henrique. […]
Reunidos, pois, no largo da Trindade, L[uís] B[arbosa]. — J[osé] B[arbosa] — E[varisto] B[asto] — e este vosso attento venerador e creado, estavamos alli esperando que o auriga ajaezasse as horsas, e as atrelasse á ambulancia, innominada ainda na grande variedade de locomotivas, desde o carroção-Oliveira(*) até ao gig. Na physionomia de todos quatro via-se a pallidez do receio, aquelle mêdo invencivel aos mais corajosos, se commettem uma empreza de muitos perigos, posto que de muita gloria, quer vençam, quer pereçam n'ella. […]
Estavamos, pois, em muda conversação com os nossos espiritos, quando o carrilhão da Trindade badalejou a aria do “Rigoletto”. A indignação espertou-nos do extasis doloroso. Esporeou-nos o animo abatido aquelle estranho insulto ás artes. Diz Werner que depois da palavra divina, o mais delicioso que póde ouvir-se é a musica. Seria; mas o diabo empoleirou-se, faz hoje cinco annos, nos corucheus da Trindade, e a musica tornou-se o seu palavriado satanico.
Desejamo-nos então longe do Porto. Calaram-se receios, e saudades. Cederam á zanga os sentimentos grandes. Partimos.
Principiaram os trabalhos. Nós eramos quatro, o carro tinha quatro logares, porém, faltava um para o chapeu de E. B. […] E. B., receiando eclypsarse nas cavidades insondaveis do seu chapeu, sendo internado n'elle por um dos solavancos do carro, appellou para a generosidade de J. B., e alcançou um bonet portatil, que o pôz a salvo do jogar de cabeça contra a abobada da locomotiva […] Deslocado o chapeu, era necessario acondicional-o no porta-malas, ou recebêl-o entre os braços como se faz a uma gorda criancinha de seis annos vestida de marthas. Além não podia ser, porque a nossa bagagem era volumosa como convinha a homens que iam com esperanças de passar lá fóra, longo tempo, endireitando as fracturas das pernas antes de repousar no seio das familias. Foi preciso, pois, tomal-o nos braços, ou apertal-o entre os joelhos, porque, se o pendurávamos, a avalanche deslocava-se, e, cahindo, semeava entre nós a discordia e a inquietação.
Que nos perdôem os espíritos fortes: o nosso trem era um milagre. Como um dos cavallos, se o eram, variava o chôto favorito, tremelhicando sobre o jarrete da perna direita em redopio convulsivo, isso é que eu nunca entendi, posto que me tenho esmerado em estudar a pathologia veterinaria para certos effeitos. […] 0 da direita era de uma subtileza nervosa tal que, ao estalar do chicote, respondia, abaixando a orelha. O da esquerda, sensivel ás suas reminiscencias de 1810, alongava as cordoveias do pescoço, a cada vergoada stridente; e algumas vezes, olhando para cima, franzia e enviezava o beiço superior; e, com esta careta, parecia rir de nós, ou provocar, zombando, como Hamlet, o seu triste fado.
O carro era cousa assim a modo de lagar, com bambinellas pensis de oleado, e almofadas de marroquim, estofadas de caroços duros, que contundiam acerbamente as carnes. Os recostos eram de ferro estreme inflexiveis ao choque das costellas. As portinholas, o pavimento, e o resto da madeira, bem aproveitada, construia um navio de 300 toneladas. […]
Ahi está o theatro da menor parte de nossas angustias. Pôtro movel de torturas corporaes, ainda assim, em confronto das que nos esperavam, póde dizer-se que uma sultana não se senta em mais flacidos coxins. O que fizemos, logo que entramos, e sentimos o risco da nossa situação, foi aconchegarmo-nos como os meninos no lago dos leões, de que reza a Biblia.
O Senhor Jesus do Monte, em cuja romagem vamos, nos tenha debaixo de sua mão, e ávante!

(*) Manuel José d'Oliveira é um nome respeitavel do Porto, proprietario de innumeraveis carroções, cuja alma elle é, e irá com elles, de methamorphose em methamorphose, até ao derradeiro bocejo da humanidade.
Branco, 18582: 87-92


NB – Na transcrição foi respeitada a grafia da edição consultada.

Leituras:
Branco, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
Cabral, A., 1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho. (2.ª ed., 2003)

[Continuará]