segunda-feira, 15 de maio de 2017

CAMILO &M VIANA
[1857: “velha” como “nova” (07)]


       Interrompo, hoje, as transcrições que, em cartas dirigidas a José Barbosa e Silva, Camilo faz referências a «D. Isabel Cândida (a freira)» [(re)ver RODRIGUES, 2017b - 2017e], para apresentar um «folhetim» que João Junior (pseudónimo do Escritor) publicou, há 160 anos, precisamente no dia 15 de maio de 1857, no jornal A Aurora do Lima (n.º 201).
           Recorde-se que Camilo se encontrava a residir em Viana do Castelo, onde tinha chegado na tarde de 7 de abril daquele ano, para - segundo a notícia da sua chegada, publicada no dia 8 de abril do Aurora- tratar da saúde e dar a sua colaboração às páginas deste periódico. [(Re)ver RODRIGUES, 2017] A seu tempo,  porém, dedicarei os "posts" possíveis e necessários às relações do romancista com o mais antigo jornal português em circulação.
           
          O «folhetim» camiliano que vai ler, paciente leitor, é uma deliciosa crónica, irónica e picaresca. O seu suposto autor tártaro - Jules Janin de Kaschgar [leia em voz alta este nome], mas que acaba por assinar Cong-futzeu-Ram-Mokun - faz a descrição de um tipo de mulher - «a chata» - embora identifique quatro, como verá, mas que não chega a descrever. Infelizmente, comento eu!

           Ora cá vai o

FOLHETIM(*)
(Traduzido d’um jornal da Tartaria.)
O QUE É A MULHER?

       Authores, embalados no berço da humanidade, fallam da mulher, e provam que o amor, se não é mais velho, é pelo menos contemporaneo dos narizes.
       Herodoto, cognominado «o pai da historia» no seu Livro 1.º, intitulado Clio, diz que os persas roubaram uma leôa grega, chamada Europa; os gregos, em despique, roubaram Medéa; e o filho de Priamo desforrou os seus roubando a janota Helena.
       D’onde eu, folhetinista tártaro, mais ou menos emético, concluo, por concluir alguma cousa, que o amor é mais velho que Herodoto; e as tolices, por cauza do dito, são tão velhas que já não póde fazer-se uma com originalidade.
       Ácerca da muita sommas de bordoada, que a antiguidade deu e levou por causa do femeaço implamado, diz o citado Herodoto com grande tino:
       «Tolos são os que se occupam de vingar os raptos do mulherio; é de ajuizados não ir em cata d’ellas, porque claro é: se ellas não quizessem ir, não iam.» Tambem me parece.
       Dês que li isto no velho patarata de Halicarnasso, fiquei entendendo que o homem era cá dos meus, e poderia, com a leitura d’alguns romances, ser um soffrivel folhetinista.
       O cazo é que o amor é coevo do primeiro cazal de bichos, cujo oriundos somos.
       As mulheres são a ôlha deste grande pote em que ferve a humanidade. O pensamento é meu. A expressão será broeira, mas a idéa é fina. Vai vestida com a simpleza attica, rude e francamente grega, como Homero veste as suas.
       Sacrifico as conveniencias á meia-nudez do pensamento. Abomino a frandulage de louçainhas d’adêlo, e pinchebeques com que se descaracteriza o espirito, ao mesmo tempo que a materia, damninha e tentadora, anda por ahi tão nua e a geito de ruins pensamentos, que não há furtar-se a gente ás aboizes do demonio.
       Vinha eu definindo a mulher, e queria dizer que… (vá á moderna…) que a mulher é o sublimado… corrosivo da materia organica.
       Parece-me sandia a methaphora, assim Deus me salve; mas á moderna é aquillo, ou senão isto: «A mulher é o creme do leite ordinhado nos seios uberrimos da idéa-mãi.» E para não sahir dos lacticinios, a definição sahiu-me a nata do purismo romantico, ou eu sou um parvoinho superior ao meu alcance.
       Provado que a mulher está para o homem na relação do homem para o urso, convém saber quantas variedades há de mulheres.
            1.ª A mulher chata.
            2.ª A mulher redonda.
            3.ª A mulher bicuda.
       Regeito a 4.ª variedade – mulher quadrada, porque até hoje não a descobri na natureza.
       Nesta classificação não sei se entra a plastica, ou a asneira. O que sei é que o meu espirito concebe a figura geometrica da idéa que me foge, como lampreia, d’entre as unhas da expressão esthetica.
       A mulher chata é a que não tem mais alma que uma abobora-porqueira, e aloja quatro estomagos como o camelus dromedarius de Linneu.
       A mulher chata ama, em tempo competente, dos quinze até aos vinte e cinco annos; depois fecham-se as valvulas. Até então, o sangue ferve-lhe irrequieto nas arterias, e ella acceita um qualquer marido como uma garrafada de sulfato de quinino com que a febre se lhe acalma.
       Esta sazão crytica manifesta-se com movimentos peristalticos, saltos, e cabriolas como as da tartaruga sedenta d’amor. A tartaruga, porém, é superior á mulher chata, porque faz um caldo saboroso: diga-se de passagem.
       A mulher chata, considerada no sei intellecto, não sabe lêr lettra de mão, e soletra de cócoras ás criadas as chulices metricas do Reportorio do preto, com que chora a rir, e dá palmadas de jubilo nos jarretes das suas pernas, e nos das moças. 
       O marido – regra sem excepção – é um palerma inoffensivo, que desperta ao estridor da gargalhada, e entra logo a rir-se, pondo-se á fisga d’uma pulga que o morde de embuscada no joanête n.º 4 do pé direito. A pulga escôa-se por entre os dedos esponjosos do caçador, e pincha para o embrulho das moçoilas, que pegam a gritar, sacudindo-se, e o amo a sacudir tambem a piuga, e a ama a rir, a rir, de modo que a mulher chata, nesse momento, é a creatura mais afortunada do mundo. 
       Este quadro repete-se um inverno successivo, e dá sempre enchentes de rizos e guinchos.
       A mulher chata tem quasi sempre as costas abauladas, e a barriga sae-lhe do seio flacido como um promontorio, ao sopé do qual ruge sempre a tormenta dos intestinos.
       O seu coração, humanamente fallando, é um bocado de furçura, e mais nada.
       A mulher chata, ordinariamente, morre de setenta a setenta e sete annos, voltando das caldas, onde teve de infusão uma perna coixa que um ar ruim lhe tolhêra.
       O que depois lhe acontece não sei ao certo; porém como philosopho sectario da eternidade da materia, e por isso mesmo convicto de que as methamorphoses se operam, subindo um elo na escala da perfectibilidade organica – creio que a mulher chata passa a mulher redonda.
       E da que hade tractar-se.

Cong-futzeu-Ram-Mokun.

       (*) Traduzimos para que se veja o atrazo da litteratura tártara. Uma colonia de litteratos portuguezes, estabelecidos em Macau, poderiam haurir grandes proveitos do folhetim, que hoje começa a ser moda na Tartaria. O author do que vai lêr-se (que desgraça!) é o Jules Janin de Kaschgar, cidade concideravel dos tartaros Kalmouks.


Nota de João Juniro - traductor.

[Reproduzido em COSTA, 1926: 43-46. Respeitada a grafia da edição consultada, que reproduz a grafia do Aurora. Também em MOUTINHO, 2017: 271-273.]


Referências:
COSTA, Júlio Dias da, 1926: Dispersos de Camilo. Vol. III - Crónicas (1857-1885). Coimbra: Imprensa da Universidade.
MOUTINHO, José Viale (org.): Camiliana 4 - Crónicas, textos polémicos e artigos escolhidos. S/l: Círculo de Leitores.
RODRIGUES, David F., 2017: «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (01)»:http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/04/camilo-viana-1857velha-como-nova-01.html
----------------, 2017a): «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (02)»:http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/04/camilo-viana-1857-velha-como-nova-02.html
-----------------, 2017b): «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (03)»:http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/04/camilo-viana-1857-velha-como-nova-03.html
-----------------, 2017c): «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (04)»:http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/04/camilo-viana-1857-velha-como-nova-04.html
-----------------, 2017d): «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (05)]:  http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/05/camilo-viana-1857velha-como-nova-05.html
-----------------, 2017e): «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (06)]: http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/05/camilo-viana-1857-velha-como-nova-06.html

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