CAMILO &M VIANA
[1857: “velha” como “nova” (07)]
Interrompo, hoje, as transcrições que, em cartas dirigidas a José Barbosa e Silva, Camilo faz referências a «D. Isabel Cândida (a freira)» [(re)ver RODRIGUES, 2017b - 2017e], para apresentar um «folhetim» que João Junior (pseudónimo do Escritor) publicou, há 160 anos, precisamente no dia 15 de maio de 1857, no jornal A Aurora do Lima (n.º 201).
Recorde-se que Camilo se encontrava a residir em Viana do Castelo, onde tinha chegado na tarde de 7 de abril daquele ano, para - segundo a notícia da sua chegada, publicada no dia 8 de abril do Aurora- tratar da saúde e dar a sua colaboração às páginas deste periódico. [(Re)ver RODRIGUES, 2017] A seu tempo, porém, dedicarei os "posts" possíveis e necessários às relações do romancista com o mais antigo jornal português em circulação.
O «folhetim» camiliano que vai ler, paciente leitor, é uma deliciosa crónica, irónica e picaresca. O seu suposto autor tártaro - Jules Janin de Kaschgar [leia em voz alta este nome], mas que acaba por assinar Cong-futzeu-Ram-Mokun - faz a descrição de um tipo de mulher - «a chata» - embora identifique quatro, como verá, mas que não chega a descrever. Infelizmente, comento eu!
Ora cá vai o
FOLHETIM(*)
(Traduzido d’um jornal da Tartaria.)
O QUE É A MULHER?
Authores, embalados no berço da
humanidade, fallam da mulher, e provam que o amor, se não é mais velho, é pelo
menos contemporaneo dos narizes.
Herodoto, cognominado «o pai da
historia» no seu Livro 1.º,
intitulado Clio, diz que os persas
roubaram uma leôa grega, chamada Europa; os gregos, em despique, roubaram
Medéa; e o filho de Priamo desforrou os seus roubando a janota Helena.
D’onde eu, folhetinista tártaro, mais
ou menos emético, concluo, por
concluir alguma cousa, que o amor é mais velho que Herodoto; e as tolices, por
cauza do dito, são tão velhas que já não póde fazer-se uma com originalidade.
Ácerca da muita sommas de bordoada,
que a antiguidade deu e levou por causa do femeaço implamado, diz o citado
Herodoto com grande tino:
«Tolos são os
que se occupam de vingar os raptos do mulherio; é de ajuizados não ir em cata d’ellas,
porque claro é: se ellas não quizessem ir, não iam.» Tambem me parece.
Dês que li
isto no velho patarata de Halicarnasso, fiquei entendendo que o homem era cá
dos meus, e poderia, com a leitura d’alguns romances, ser um soffrivel
folhetinista.
O cazo é que
o amor é coevo do primeiro cazal de bichos, cujo oriundos somos.
As mulheres
são a ôlha deste grande pote em que ferve a humanidade. O pensamento é meu. A
expressão será broeira, mas a idéa é fina. Vai vestida com a simpleza attica,
rude e francamente grega, como Homero veste as suas.
Sacrifico as
conveniencias á meia-nudez do pensamento. Abomino a frandulage de louçainhas d’adêlo,
e pinchebeques com que se descaracteriza o espirito, ao mesmo tempo que a materia,
damninha e tentadora, anda por ahi tão nua e a geito de ruins pensamentos, que
não há furtar-se a gente ás aboizes do demonio.
Vinha eu
definindo a mulher, e queria dizer que… (vá á moderna…) que a mulher é o
sublimado… corrosivo da materia organica.
Parece-me
sandia a methaphora, assim Deus me salve; mas á moderna é aquillo, ou senão
isto: «A mulher é o creme do leite ordinhado nos seios uberrimos da idéa-mãi.»
E para não sahir dos lacticinios, a definição sahiu-me a nata do purismo
romantico, ou eu sou um parvoinho superior ao meu alcance.
Provado que a
mulher está para o homem na relação do homem para o urso, convém saber quantas
variedades há de mulheres.
1.ª A mulher
chata.
2.ª A mulher
redonda.
3.ª A mulher bicuda.
Regeito a 4.ª variedade – mulher quadrada, porque até hoje não a
descobri na natureza.
Nesta classificação não sei se entra
a plastica, ou a asneira. O que sei é que o meu espirito concebe a figura
geometrica da idéa que me foge, como lampreia, d’entre as unhas da expressão
esthetica.
A mulher chata é a que não tem mais
alma que uma abobora-porqueira, e aloja quatro estomagos como o camelus dromedarius de Linneu.
A mulher chata ama, em tempo
competente, dos quinze até aos vinte e cinco annos; depois fecham-se as
valvulas. Até então, o sangue ferve-lhe irrequieto nas arterias, e ella acceita
um qualquer marido como uma garrafada de sulfato de quinino com que a febre se
lhe acalma.
Esta sazão crytica manifesta-se com
movimentos peristalticos, saltos, e cabriolas como as da tartaruga sedenta d’amor.
A tartaruga, porém, é superior á mulher chata, porque faz um caldo saboroso:
diga-se de passagem.
A mulher chata, considerada no sei
intellecto, não sabe lêr lettra de mão, e soletra de cócoras ás criadas as chulices
metricas do Reportorio do preto, com
que chora a rir, e dá palmadas de jubilo nos jarretes das suas pernas, e nos
das moças.
O marido – regra sem excepção – é um
palerma inoffensivo, que desperta ao estridor da gargalhada, e entra logo a
rir-se, pondo-se á fisga d’uma pulga que o morde de embuscada no joanête n.º 4
do pé direito. A pulga escôa-se por entre os dedos esponjosos do caçador, e
pincha para o embrulho das moçoilas, que pegam a gritar, sacudindo-se, e o amo
a sacudir tambem a piuga, e a ama a rir, a rir, de modo que a mulher chata,
nesse momento, é a creatura mais afortunada do mundo.
Este quadro repete-se um inverno
successivo, e dá sempre enchentes de rizos e guinchos.
A mulher chata tem quasi sempre as
costas abauladas, e a barriga sae-lhe do seio flacido como um promontorio, ao
sopé do qual ruge sempre a tormenta dos intestinos.
O seu coração, humanamente fallando,
é um bocado de furçura, e mais nada.
A mulher chata, ordinariamente, morre
de setenta a setenta e sete annos, voltando das caldas, onde teve de infusão
uma perna coixa que um ar ruim lhe tolhêra.
O que depois lhe acontece não sei ao
certo; porém como philosopho sectario da eternidade da materia, e por isso
mesmo convicto de que as methamorphoses se operam, subindo um elo na escala da
perfectibilidade organica – creio que a mulher chata passa a mulher redonda.
E da que hade tractar-se.
Cong-futzeu-Ram-Mokun.
Nota de João
Juniro - traductor.
[Reproduzido em COSTA, 1926: 43-46. Respeitada a grafia da edição consultada, que reproduz a grafia do Aurora. Também em MOUTINHO, 2017: 271-273.]
Referências:
COSTA, Júlio Dias da, 1926: Dispersos de Camilo. Vol. III - Crónicas (1857-1885). Coimbra: Imprensa da Universidade.
MOUTINHO, José Viale (org.): Camiliana 4 - Crónicas, textos polémicos e artigos escolhidos. S/l: Círculo de Leitores.
RODRIGUES, David F., 2017: «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (01)»:http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/04/camilo-viana-1857velha-como-nova-01.html
----------------, 2017a): «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (02)»:http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/04/camilo-viana-1857-velha-como-nova-02.html
-----------------, 2017b): «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (03)»:http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/04/camilo-viana-1857-velha-como-nova-03.html
-----------------, 2017c): «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (04)»:http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/04/camilo-viana-1857-velha-como-nova-04.html
-----------------, 2017d): «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (05)]: http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/05/camilo-viana-1857velha-como-nova-05.html
-----------------, 2017e): «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (06)]: http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/05/camilo-viana-1857-velha-como-nova-06.html
COSTA, Júlio Dias da, 1926: Dispersos de Camilo. Vol. III - Crónicas (1857-1885). Coimbra: Imprensa da Universidade.
MOUTINHO, José Viale (org.): Camiliana 4 - Crónicas, textos polémicos e artigos escolhidos. S/l: Círculo de Leitores.
RODRIGUES, David F., 2017: «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (01)»:http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/04/camilo-viana-1857velha-como-nova-01.html
----------------, 2017a): «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (02)»:http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/04/camilo-viana-1857-velha-como-nova-02.html
-----------------, 2017b): «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (03)»:http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/04/camilo-viana-1857-velha-como-nova-03.html
-----------------, 2017c): «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (04)»:http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/04/camilo-viana-1857-velha-como-nova-04.html
-----------------, 2017d): «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (05)]: http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/05/camilo-viana-1857velha-como-nova-05.html
-----------------, 2017e): «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (06)]: http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/05/camilo-viana-1857-velha-como-nova-06.html
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