sexta-feira, 12 de maio de 2017

CAMILO &M VIANA
[1857: “velha” como “nova” (06)]


            Ora cá vai a carta de Camilo para José Barbosa e Silva, na sua versão integral, tal como havia prometido no “post” anterior [(Re)ver RODRIGUES, 2017d]. Trata-se de documento muito importante sobre as relações do Escritor com «D. Isabel Cândida (a freira)», por um lado, e sobre a sua vinda para Viana [(Re)ver RODRIGUES, 2017], a fim de ser o redator principal de A Aurora do Lima, por outro. E, além disso e também por isso, carta que mostra ainda o estado de inquietação psicológica e económica em que vivia o filho de Manuel Joaquim Botelho Castelo Branco (1778-1835) e da «mãe incógnita» Jacinta Rosa [de Almeida] do Espírito Santo [Ferreira] (1799-1827). [(Re)ver RODRIGUES, 2014]
Dada a real importância deste documento, os comentários ficam para “post(s)” próximo(s). Agora, é obrigatório ler, com a melhor atenção, a carta:


MEU CARO BARBOSA.   

            Cauza-te espanto uma carta m[inh]a depois de outra q[ue] hontem receberias? Tamb[e]m a mim me maravilha escrever-t’a. São 11 horas da noite, e chego do Porto, com estes restos de coração atravessados n’uma roda de navalhas. É o caso:
        Eu nunca disse a Izabel Candida as m[inh]as intenções a resp[ei]to de ir p[ar]a Vianna, p[o]r que previa o abalo, e receava os efeitos p[o]r ella e p[o]r mim, que sou um imbecil, quando sou cauza e ao m[es]mo tempo testemunha d’uma grande dor. Era m[inh]a tenção deixal-a recolher ao convento, e depois ca de fora escrever-lhe uma carta, longam[en]te meditada, de modo que o golpe fosse dado com punhal d’um só gume: isto é – tencionava mentir-lhe, dizendo q[ue] a minha hida era simplesmente uma tentativa p[ar]a o melhoram[en]to da m[inh]a saúde.
        Hoje, indo eu levar-lhe m[inh]a filha, que se achava aqui há 3 dias, recebeu-a chorando, sem querer dizer-me a razão p[o]r que. Muito instada, prorompeu n’uma acusação quase virolenta á m[inh]a ingratidão, e acabou p[o]r me dizer q[ue] sendo ella a m[inh]a amiga era a ultima q[ue] devia saber que eu sahia do Porto. Da violência passou para a mansidão das lagrimas suplicantes, e por fim acabou por ser assaltada d’um terrivel incommodo que me assustou. N’este estado, foi-me impossível dizer-lhe uma so palavra de consolação. M[inh]a filha chorava, e o medico Ferr[ei]ra que eventualmente occorreu n’este ensejo, fez-me sentir que a organização enfraquecida da pobre m[ulh]er podia facilm[en]te succumbir a semelhante choque. Eu estava parvo, e parvo sahi quando a noite já adiantada me obrigou.
        Aqui tens uma situação bem especial – uma das mi[nh]as deabolicas situações, em q[ue] o coração revive em toda a compaixão q[ue] as m[inh]as proprias desgraças não tem podido desvanecer p[ar]a] com os outros. Isto é uma fatalid[ad]e de q[ue] não ha partido a tirar. É-me impossivel, já agora, ser meu. Ha de haver sempre em mim um pensam[en]to bom q[ue] me escravize ao mal. Sou como aquelle que mede a profundid[ad]e do abysmo, e não tem a resolução de recuar.
        Vamos remediar d’algum modo isto meu caro Barbosa. Eu adevinho q[ue] a tua boa alma não é estranha aos sentim[en]tos da minha. D’estes sabes tu sentil-os melhor q[ue] eu. Penso até que m’os louvas, e serias o primeiro a dizer-me «não desampares essa pobre m[ulh]er, que tem contra ella a id[ad]e a dizer-lhe que os seus annos já não podem vencer os calculos d’um homem»[.] Isto é duro, e chora-me o coração figurando-me a alma de I[sabel] Candida, q[ue] não tem em si recursos p[ar]a a defeza d’uma ingratidão. Como poderemos remediar isto? Ha um modo q[ue] tu recuzarás, mas eu não deixo p[o]r isso de t’o propor. Eu serei d’aqui redactor do teu jornal. Uma simples carta tua com poucas palavras será sufficiente inspiração p[ar]a artigos especialmente consagrados ao Destricto. Mandarei regularm[en]te 3 artigos politicos-economicos p[ara] o jornal, e 3 correspondencias que devem substituir as do Novaes, que eu acho m[ui]to inferiores a uma patacoada. Alguns extractos e correspondencias bastarão p[ar]a encher dignam[en]te a folha. Se, todavia, p[o]r q[u]alq[ue]r consideração, não queres apear o Novaes, eu escreverei m[ai]s q[ue] os 3 artigos, e forjaria uma apparente correspondencia de Lx.ª [Lisboa][.] Convencido estou de q[ue] a m[inh]a assistencia ao pe do jornal não o tornaria p[o]r isso mais lido nem m[ai]s em dia, n’uma terra onde é reflexiva a politica, e donde d’um dia p[ar]a o outro tu me avisas dos pontos em q[ue] convem tocar.
        Não sinto precisão de te dizer m[ai]s[.] Tu é que me deves escrever logo q[ue] resolvas, na certeza de q[ue], p[o]r um motivo m[ui]to nobre, terei grande pezar q[ue] recuzes. Devo dizer-te q[ue] me contento, em paga, com a q[ue] darias a qual[que]r redactor que p[ar]a ahi fosse. Pareceu-me dever notar isto como uma circumstancia que te faria pensar alguns instantes.

        (Foz, 11 de Setembro de 1856)
                                                                            Teu Camillo
[Barbosa, [1919]: 16-19. Também em Cabral, 1984 (I): 117-119]

        Então, até ao próximo!
            E continue a ler Camilo! Tem tanto e tão rico onde pode (es)colher!

Referências:
BARBOSA, L. Xavier, [1919]: Cem Cartas de Camillo. Lisboa: Portugal-Brasil Limitada, Sociedade Editora. [À entrada do livro, ao centro de página ímpar (não numerada), encontra-se a seguinte informação: «A propriedade d'este livro pertence ao CULTO CAMILIANO, por generosa dadiva do autor.»]
CABRAL, Alexandre, 1984: Correspondência de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva - I. (Escolha, prefácio e comentários de). Lisboa: Horizonte.
RODRIGUES, David F., 2017: «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (01)»: http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/04/camilo-viana-1857velha-como-nova-01.html
-----------------, 2017a): «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (02)»: http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/04/camilo-viana-1857-velha-como-nova-02.html
-----------------, 2017b): «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (03)»: http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/04/camilo-viana-1857-velha-como-nova-03.html
-----------------, 2017c): «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (04)»: http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/04/camilo-viana-1857-velha-como-nova-04.html
-----------------, 2017d): «CAMILO &M VIANA / [1857: “velha” como “nova” (05)]:  http://vianacamilo.blogspot.pt/2017/05/camilo-viana-1857velha-como-nova-05.html
-----------------, 2014: «Camilo faz hoje [16/03] 189 anos»: http://vianacamilo.blogspot.pt/2014/03/006.html

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