segunda-feira, 2 de março de 2015

025. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [22]



Conforme referi, em nota [NB2], no post anterior, em Duas Horas de Leitura encontram-se mais dois escritos onde Camilo se refere aos irmãos vianeses Barbosa e Silva. Todavia, porque diretamente relacionada com a crónica «Do Porto a Braga», inicialmente intitulada «Peregrinação à Face do Globo», apresentarei, neste, uma carta que o Escritor escreveu a Evaristo Basto, em 1864. Nela, o romancista recorda acontecimentos vividos pelos quatro peregrinos (Camilo, Evaristo Basto, Luís e José Barbosa e Silva), no passeio que deram até Braga / Bom Jesus do Monte. O objeto e objetivo deste blogue são as relações de profunda amizade que Camilo manteve com dois irmãos vianeses e como tais relações se refletem na obra do Escritor. Também nesta carta, datada de janeiro, se encontram tais referências.






LEITURAS
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
-------------, 1864: No Bom Jesus do Monte. Porto: Viuva Moré. Edição consultada:  AQUI.
RODRIGUES, D. F., 2013: «”A excellencia de carnaval” (1856)»,em AQUI
-----------, 2014: «Camilo faz hoje 189 anos». AQUI
-----------, 2014a: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [I], AQUI
-----------, 2014b: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [II], AQUI.
-----------, 2014c: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [III], AQUI.
-----------, 2014d: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [V], AQUI.
-----------, 2014e: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VI], AQUI.
-----------, 2014f: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VII], AQUI.
-----------, 2014g: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VIII], AQUI.
-----------, 2014h: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [IX], AQUI.
-----------, 2014i: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [X], AQUI.
-----------, 2014j: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [XI], AQUI.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

024. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [21]
          em Duas Horas de Leitura (1857) [XI]

[Continuação do post anterior.]

            Com este, termino a série de posts dedicados às relações de Camilo Castelo Branco com os irmãos vianeses Luís e José Barbosa e Silva, explícita ou implicitamente referidos na crónica «Do Porto a Braga», cujo primeiro título foi «Peregrinação sobre a Face do Globo», reunida, depois com outros escritos, em Duas Horas de Leitura. Nesta, o Escritor relata com muita fantasia e não menor ironia e, por vezes, algum sarcasmo, o passeio que os três, juntamente com Evaristo Basto, fizeram entre aquelas duas cidades, com paragem e pernoita em Famalicão. Mas o destino final era o Bom Jesus do Monte, estância que, desde muito cedo, o haveria de marcar afetivamente.

As melhores recordações que Camilo teve do Bom Jesus foram depois de 1856, ano em que, com os três amigos, visitara pela segunda vez. A primeira foi quando tinha 11 anos, em 1836, após a morte do pai, a caminho de Vila Real, onde ficaria, juntamente com a irmã Carolina, aos cuidados da tia paterna, Rita Emília. [Ver AQUI.] Depois do ano da crónica referida, Camilo visitou muitas vezes a estância, na companhia de Ana Plácida, ainda ela vivia com o marido, Manuel Pinheiro Alves. Numa delas, os dois amantes terão tido oportunidade de ser um casal feliz, física e psicologicamente, pela primeira vez. E outras se terão seguido, evidentemente.

[Escadório atual do Bom Jesus do Monte. Fotografia colhida em Google+ / Imagens / Bom Jesus do Monte]

Mas a recordação pior que o Escritor nos dá e revela do Bom Jesus é da «hospedaria real», onde os quatro «peregrinos» tencionavam jantar e pernoitar. Jantar ainda jantaram. Agora dormir, foi impossível, devido à falta de higiene, a tal ponto de Camilo de desejar ver exposto «ao azorrague e às moscas o taverneiro estabelecido no Senhor do Monte, como numa na «picota». [Branco, 18562: 165]
E prosseguindo, relata Camilo:

Quando os nossos olhos mortaes acharam este foco de infecção, sentimos spasmos no esophago, e estivemos a lançar naquelle chão maldicto o café forte de Braga. Fôramos alli como a um manancial de inspirações saudosas, e encontramos uma Aganippe de... d'onde beberam, talvez, os poetas que decoraram as paredes d'aquella sentina. Nunca os beiços se te descollem d'essa fonte, taverneiro ignobil! Já que não approveitas as grossas nascentes, que te jorram á porta, para lavares o teu bragal, ainda eu te veja, sicario, reduzido, não a pó, que é esse o commum destino da humanidade, mas.... Para elles são vozes no deserto estas apostrophes; mas, se ellas chegarem aos ouvidos e ao illustrissimo nariz da camara municipal de Braga, a ella incumbe vigiar o quarto ou cloaca n.º 2 da immunda tasca, e remover d'alli aquellas colchas, fumigar aquelle quarto, e desalojar o sordido taverneiro que alli está envergonhando a terra, provando que elle é mais immoral do que foram todos juntos os judeus das capellas visinhas.
Anojados e phreneticos corremos ao quarto dos nossos rapazes a relatar o escandalo. E[varisto] B[asto] regougava que o deixassem dormir, transigindo assim momentaneamente com a impudencia. L[uís] B[arbosa] pediu com ancia umas piugas, e saltou da cama, livido de terror. Então juramos não passar alli a noite, e reunimos em sessão para decidirmos o que devia comer-se, menos susceptivel da influencia suja do cozinheiro. Meditada profundamente a proposta, e recolhido cada qual em sua consciencia, levantaram-se todos como um só homem e preromperam em vozes unanimes, dizendo: — “Nós somos livres, o nosso estomago livre é, e, assim queremos bacalhau.”
E. B. viera juntar o seu brado á causa da justiça e da moralidade. […]
Em quanto o bacalhau se cosia, fomos desenjoarnos com o ar purissimo do arvoredo.
[…]
Houve silencio de alguns minutos. Foi E. B. que o quebrou assim:
“A mim disseram-me que enviasse d'aqui um suspiro, nas azas da saudade, ao coração saudoso... não direi de quem, porque o amor mais sancto é o que mais se resguarda no sanctuario do mysterio. Um suspiro saudoso! Como darei eu um suspiro?! É forçoso que se cumpra o sacrifício.” Disse, e soltou um som cavo, coisa inclassificavel entre o arrôto e o espirro.
Não sei se os leitores se riram; eu não pude. Aquelle gracejo para mim foi um incentivo de mui dolorosa meditação. E não pude guardal-a só comigo: revelei-a assim aos meus amigos:
“Se nos aqui reunissemos antes dos vinte annos, E. B. não teria senão um suspiro em caricatura com que saudasse neste logar a memoria de uma mulher? Os nossas corações teriam, apenas, uma ironia para celebrar debaixo d'este céo o amor? É bem lastimavel esta aridez de quatro homens, tres dos quaes [C., J. B. e E. B.] não ha muito que revellavam nos versos paixões profundas, extasis do céo, amores incendiarios, saudades sanctas de uma outra vida que não é esta! Que almas tão decahidas as nossas! Este local é como um padrão onde devem vir afferir-se os corações que perderam no mundo o seu valor. Quem não traz para aqui a imagem de uma mulher que possa cá purificar-se em imagem d'anjo, é bem infeliz! Pois nem ao menos uma saudade do que fomos? nem a esperança póde já reviver? Que sentes tu L. B.?
[“]Nada.[“]
“E tu, J. B.?
[“]Nada: estou prodigiosamente estupido. Preciso estar callado.[“]
“Mas no silencio o que ouves? o que dizes?
[“]Nada: é um cáhos de idêas, sem significação.[“]
“E tu, E. B. que sentes?
[“]Vontade de jantar. Essas perguntas são vans e pretenciosas. Trinta annos passados, volta-se a ampulheta.[…] É chegada a tua vez: e tu que sentes? [“]
  Eu ia dizer o que sentia, quando divizei dous vultos sentados á sombra de uma arvore. […]
[…] Não sei d'olhos mais bonitos, nem de cabellos negros que tão bem dissessem com o marfim do collo! Não sei quem ella é, nem conheço o ditoso conjuge; mas não sirva isto de embargo aos meus parabens a ella e a elle. Vivam muitos annos, e tenham muitos meninos, que eu vou comer o meu caldo negro de Sparta que corresponde ao bacalhau de Braga.
Foi um devorar homerico ! Tudo o que está dito na Gastronomia, poema de Berchoux, é inferior áquillo! Por um auspicioso systema de compensação, conheci que a vitalidade dos meus amigos refugira do coração para outra viscera dos suburbios. Provou-se o elasterio do estomago, e levou-se á evidencia que as brizas e agua fresca não eram suficiente alimento para nós. Nunca Shakspeare ousaria dizer que Hamlet vivia d'ar e esperanças, se o pobre moço, em vez de andar á bordoada com o padrasto, viesse até ao Bom Jesus de Braga impregnar-se da molecula saborosa do bacalhau. Inaugurada a realeza do estomago, como prova do maximo adiantamento, é difficil morrer de pena que não seja a de uma indigestão.
Foi justamente a morte que eu muito receei lá em cima. Ficamos n'um spasmo de tres horas, depois do jantar. Confesso que me pareceu feia a natureza, e até feias as mulheres que me sorriam divinas quando o bacalhau não era ainda metade da minha existencia vegetal. Este estylo ressente-se do meu estado de então.
Immalamos, e partimos para Braga.
Dentro do carro, fomos rodados de modo que o regurgitamento cedeu aos choques.
Entramos na cidade ao lusco-fusco.
Desde a entrada até ao campo de Sanct’Anna fomos recebidos com assobios e guinchos e mugidos dos garotos, aprendizes de chapelleiro, que vinham ás portas das officinas ganir. Os nossos antigos descobridores quando saltavam em praia de barbaros eram assim recebidos. O mais é que os patrões das officinas pareciam folgar naquelle alarido da canalha. Que terra! Aquillo poderá ser gente? O que lhes vale é o terço depois que uivam. Para que quererá Deus lá em cima similhantes alarves?
Chegamos á hospedaria da Estrella do Norte.
Vimos um par de grossas pernas de uma redonda matrona que se estirava o mais commodamente que se póde sobre uma cama, e dava gratis o espectaculo aos que lhe passavam deante da sua porta. Pareceu-nos bastante ingenua a nossa vizinha de quarto! Os commentarios ás pernas foram interrompidos por um robusto “aqui-d'el-rei” que vinha da rua.
Saiba-se o que é isto. E. B. desceu á rua, e nós fomos á janella. Vimol-o innovelar-se na mó do povo que se apinhava em redor da victima lamuriante.
Depois lá debaixo cá para o segundo andar, E.B. com toda a força dos seus pulmões, exclamou:
“Foi o fidalgo que lhe bateu.”
Apenas proferida a palavra “fidalgo!” todo aquelle gentio escoou-se pelas travessas lateraes, e o cidadão bracharense, desamparado, achou que era quéda sobre o couce do fidalgo enrouquecer gritando pelo rei, que valia menos alli que o cabo de policia.
[…]
Vou concluir.
Passamos uma noite atormentada. A legião dos persovejos lá de cima tinha destacamentos cá em baixo. L. B. e E. B. andaram tres horas com os enxergões ás costas. Eu descobri na minha cama um animal novo; não era bem insecto nem mollusco; repelli-o com toda a força da minha indignação, e adormeci.
Ás tres horas da manhã estavamos em marcha. Os dous irmãos Barbosas para Vianna, sua bella patria: Evaristo Basto, e eu para o Porto.
Agora seriedade:
No abraço de despedida, conhecemos que ainda tinhamos coração, um grande coração para a amizade. […] [Id.: 166-173]

NB1 – Foi respeitada a grafia da edição consultada. O sinal […] indica fragmentos que não foram transcritos.
NB2 – Em Duas Horas de Leitura encontram-se mais dois escritos em que o Camilo se refere aos irmãos vianeses Barbosa e Silva, como a seu tempo se verá. Todavia, porque diretamente relacionada com a crónica «Do Porto a Braga», apresentarei, no próximo post, uma carta que o Escritor escreveu a Evaristo Basto, em 1864, e onde o romancista volta a referir-se, naturalmente, aos irmãos Barbosa e Silva. Essa carta encontra-se na narrativa No Bom Jesus do Monte (1864).

LEITURAS
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
RODRIGUES, D. F., 2013: «”A excellencia de carnaval” (1856)»,em AQUI
-----------, 2014: «Camilo faz hoje 189 anos». AQUI
-----------, 2014a: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [I], AQUI
-----------, 2014b: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [II], AQUI.
-----------, 2014c: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [III], AQUI.
-----------, 2014d: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [V], AQUI.
-----------, 2014e: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VI], AQUI.
-----------, 2014f: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VII], AQUI.
-----------, 2014g: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VIII], AQUI.
-----------, 2014h: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [IX], AQUI.
-----------, 2014i: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [X], AQUI.


segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

023. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [20]
          em Duas Horas de Leitura (1857) [X]


[Continuação do post anterior]


Depois de terem pernoitado na cidade de Braga, os quatro peregrinos [Camilo, Evaristo Basto e os irmãos vianeses Luís e José Barbosa e Silva], seguiram para o Bom Jesus do Monte. O relato camiliano da viagem é conforme a seguir a se lê. Apenas se retiraram alguns fragmentos, para não tornar este post ainda mais longo e por não dizerem explícita e diretamente respeito aos irmãos Barbosa e Silva.


Ora façam o favor de ouvir, com atenção divertida, o nosso Escritor:

PRIVADOS uma grande hora das salgadas observações de E[varisto] B[astos], fomos bater á porta da familia que o fizera esquecer de nós, e, se a myopia me não enganou, a preferencia era racional. Mulheres, ainda que sejam primas, fôram, são, e hão-de ser, cada vez mais, a maxima formosura d'este planeta. Se as tiram de cá, isto é immundo, a vida é um desterro, e a vaidade, o coração, a bravura, o talento, a gloria são palavras sem significação. O que restaria? Um enxame de bipedes, agatinhando n'uma bolla, feiamente achatada para os polos, coisa ridicula, que fez dar risadas estrondosas áquelle Micromegas habitante da estrella Syrio, de que falla Voltaire.
E. B. surgiu na janella, empunhando uma taça de café, na mais doce e cordeal beatitude de estomago. […] Lá, do balaustre da varanda, Pilatos de si mesmo, mostrava-se-nos; e nós, ralados de inveja, judaisando, estivemos quasi a bradar á familia que o crucificasse.
Aninhados na carroça, começamos a transpirar copiosamente. A testa brunida de L[uís] B[arbosa e Silva] gotejava como uma catarata. J[osé] B[arbosa e Silva] soprava como um Eolo de fraque. E. B. contava-nos em estylo inspirado a excellencia do café, a pureza do leite, e as delicias do pão quente com manteiga. Eu, cobrindo-me com a manta-chall, se não estivesse tão safada a imagem do Cezar cobrindo-se com a tunica, diria que um raio do sol oriental se me coava pela cabeça, ardente e pungente como o punhal de Brutus.
Oh! a suavissima estrada por onde subimos para o Senhor do Monte! Aquillo é que é o desconjuntarem-se as mollas do carro, o partirem-se os cavallos pela espinha, o desarticularem-se os femures á gente! Cada barrocal, cada corcovo, em que se deslocava uma entranha da sua inserção primitiva! Iamos alli todos innovelados como embrulho de annhelidos, mas annhelidos ossudos, e agudamente ossudos. A cada balanço, seguia-se a desordem, a anarchia dos joelhos, a deslocação, e o pavoroso “sauve qui peut!” [… … …   …   …  …].
Nesta angustia, os cavallos estacaram. Não era a indecisão do burro de Buridan que os sostinha: eram as vascas da morte! A parelha derretia-se no suor glacial do trespasse. Parecia de manteiga. O sota, consternado o semblante lagrimoso o olho, e verde de susto parecia pedir-nos que apeassemos. E. B., obdurado e descaridoso, não queria sahir de entre as bambinellas da dorna. Os outros saltamos para testemunhar a catástrophe em terra firme. E. B., o pertinaz, cedeu por fim ás exclamações do orador pro équibus, e desceu.
Coincidencia desastrosa! Dois lorpas, vindos de cima, bifurcados em garranos d'uma transparencia ideal, ao perpassarem por nós, deram de esporas nos ilhaes membranaceos dos bichos, para nos darem d'elles e dos garranos consubstanciados uma alta ideia. Era muito para vêr-sel Foi um distribuir de couces espantoso para todas as direcções possiveis na estrella dos ventos! Nós, inermes e espavoridos, achatamo-nos com as paredes, dando place au droit... do couce, o que a nenhum de nós acontecia pela primeira nem pela segunda vez, e tem de acontecer muitas outras ainda...
A nossa parelha, ferida nos brios como o leão da fabula, guiou as orelhas, assoprou um resfôlego de bravura senil, e correspondeu com dous pinotes tersos e compactos na anca dos rocins, especie de quilhas de barco saveiro. Foi um expediente feliz! Os garranos compartindo em desastres e glorias com outro quejando do fidalgo manchêgo, recuaram até á parede, e, no stupor mudo em que ficaram, pareciam culpar os donos como responsaveis daquella indecorosa sahida! Quando veremos nós certos garranos cavalgarem certos homens, e não estes áquelles? Quando a fraternidade não fôr uma palavra van.
Galvanisados pelas fortes commoções, os nossos triumphantes cavallos cobraram espiritos, tossiram impacientes, e, graças ao estrepito do chicote, treparam, gemebundos, com o carro vazio até ao cimo da calçada precipitosa. D'ahi ao Senhor do Monte é incalculavel o liquido caudal que nós, quatro esponjas humanas apertadas pelo calor, distillamos.
Não diziamos palavra. A poesia ia-nos literalmente aguada. A floresta balsamica, fresca, e encantadora passamol-a sem levantarmos os olhos das escadinhas ingremes. J. B. ainda quiz aspirar um sorvo daquelle frescor, e talvez saudar com um extasis do coração natureza tão rica. Eu, que sou passaro bisnau nestes enlevos poeticos, quando a camiza suada se coze ao corpo, disse-lhe que aquelles seus arrobamentos importavam um defluxo, um catarro, uma pleurite, uma pneumonite, uma laringite, e uma gastrite. J. B., aterrado por este indice pathologico, fugiu escada acima a metter-se na hospedaria, que se diz real.
Realmente taverna!
E eu vos conto.
[…   …   …   …   …   …   …   …   …   …   …   … ]
Almejando uma cama onde refossilassemos as reliquias de vida que salvaramos da tormentosa jornada, chegamos á hospedaria real, e pedimos um quarto com quatro camas. “Não ha senão dois quartos com tres camas” respondeu um gamenho em socos e mangas de camiza côr d'assucar mascavado. — Mas nós queremos quatro camas — replicou-se. “Só se fôr uma no soalho” redarguiu o bruto coçando os cotovellos.
Transigimos, recommendando-lhe que nos desse lençoes lavados.
Entramos pela cosinha, e descemos para um corredor, marginado de quartos, em forma de penitenciaria. Vimos ahi uma ama de leite cantarolando com sete rapazitos que grunhiam atraz della. Logo tive isto como ruim agouro.
Abriram-se-nos os quartos, e eu fiquei com J. B., protestando dormir seis horas. Não reparamos na limpeza, nem na porcaria. Deitamo-nos, e acareamos o somno fallando não me lembra em que. D'alli a pouco uma voz argentina de mulher fallou á porta... Preparem-se para uma aventura. Vão vêr que as scenas romanticas não são exclusivo de Paris; podem dar-se em qualquer taverna de Portugal.
Alguma coisa extraordinaria deveria topar o leitor nesta cadêa de vulgaridades chans, e chatas. Chegou a occasião.
Era, pois, uma voz argentina de mulher; daquellas vozes que se vos philtram peito dentro até á fibra mais recondita do pericardio, que é a bolsa do coração, posto que bolsa e coração sejam incompativeis.
E aquella voz soava-me nos ouvidos dulcissima e sympathica [...].
Era, pois, uma voz argentina a daquella mulher. O coração dava-me pulos no peito. Ouvil-a, e morrer, meu Deus!
“Ó José Joaquim!” dizia ella.
Quem será o ditoso mortal que se chama José Joaquim? — dizia eu a J. B.
“José Joaquim!” repetiu aquella voz feiticeira.
Bole-se na aldraba... a porta chia...
É ella! Visão febril!
Metteu dentro um segmento de cabeça, viu-nos na attitude innocente do homem primitivo... recuou; e eu, para salvar a honra surprehendida, e a natureza sem artifícios pilhada em flagrante, soltei um ronco estridulo como o dos sete dormentes reunidos.
E a voz dulcissima calou-se para nunca mais se ouvir!
E acabou-se o conto. Tudo o mais que os meus imaginosos companheiros disserem não é verdade. Desde então para cá não sei o que se fez em mim de tetrico e sepulchral ! Quando ouço proferir José Joaquim, tenho febre, e mando para a botica a garrafa de tizana. […] Porque não nasci eu José Joaquim!?
Agora, uma pedra sobre este acontecimento: não haja só pedras para os processos de notas falsas, e para as syndicancias judiciarias. Não se falle mais n'estes tres escandalos.
Bemaventurados são os que dormem. Eu e o meu infeliz companheiro de quarto não provamos a consolação do dormir. Uma horda de persovejos, sahida das furnas d'um velho catre de cerdeira, estendeu-se em atiradores sobre o meu braço esquerdo, e d'ahi convergiu em polotões, que manobravam entre a primeira e duodecima vertebra dorsal. O quartel general era no pescoço, e os piquetes estendiam-se até ao calcaneo, em ordem de batalha que faria inveja ás milicias de Tondella.
Eu dei um salto como Guliver inçado de liliputianos; soltei um grito stridulo como o do homem apunhalado traiçoeiramente pelas costas. J. B. ergueu-se hirsuto e pávido, vociferando imprecações contra o assalto inopinado dos persovejos, que á maneira dos ultimos godos, sahindo da sua Covadonga de pau amarello, lhe vinham de arrancada sobre os tecidos adiposos. Conceda-se a uma dôr legitima esta analogia entre persovejo e godo.
Saltamos fóra dos leitos, e abrimos as janellas. Os covardes retiravam em desordem, rareadas as fileiras. Nós contemplavamos, pállidos e enfiados, aquella canalha villã.
Era impossivel reconquistar o socego. Lamentamos de cocoras, como Mario em Minturnes, o nosso infortunio, e entramos a lêr as inscripções das paredes.
Não é prudente nem preciso dar de todas exacta conta. Na sua maior parte são innocentes asneiras. Aqui é um glotão que nos declara que estivera alli a comer (não diz o que) e mais o seu compadre João, no dia tantos de tal. Alli é um sandeu que levantou as patas dianteiras e rabiscou na parede umas trovas que consagra á sua amada, que deve ser uma fêmea digna de tal varão. Acolá é um abaixo assignado de muitos que attestam terem comido bem, o que lhes não ha-de acontecer em anno de carestia de feno. Em fim:

……………………………… la canaille
Ecrit son nom sur la muraille.

Uma quadra que conservo de memoria, com a sua orthographia, é esta:

Ó sr. do monte, tende cuidado
Cos mezarios que vos servem que são ladrões.
Comem mais do que vos dão,
E engulipam tres partes das raçoes.

Esta coisa tem tal ou qual phylosophia, em quanto a mim. Se estivesse em prosa, valia a pena de ser estudada, esgaravatada, e dissecada até encontrar-se a incognita do problema.
Vê-se que o poeta (porque não ha-de ser poeta?) aconselha o Senhor do Monte que se acautelle dos mezarios. É ousadia ímpia dar conselhos ao Mestre por excellencia. Nem Judas, nem Poncio, nem Caifaz, ousaram tanto. Chama concussionarios aos membros da Meza... porque comem mais do que o Senhor do Monte. Podera não comerem! Os devotos mezarios comem como comeram já outros mais devotos que elles. Se o poeta reparasse na primeira capellinha á direita, veria que os apostolos comeram um cordeiro assado, e os christãos primitivos pouco mais faziam, nas catacumbas, excepto a oração, que não é menos frequente em Braga, onde a semente evangelica em anno fertil dá um por cem. Accrescenta o truculento e ominoso poeta que os ditos mezarios engolem tres partes das rações. É engolir de mais!
[…   …   …   …   …   …   …   …   …   …   …   …   …   …]
[Branco, 18582: 153-161]

 [Continuará]

NB1 – Foi respeitada, nas citações, a grafia da edição consultada.

LEITURAS
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
RODRIGUES, D. F., 2013: «”A excellencia de carnaval” (1856)»,em AQUI
-----------, 2014: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [I], AQUI
-----------, 2014a: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [II], AQUI.
-----------, 2014b: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [III], AQUI.
-----------, 2014d: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [V], AQUI.
-----------, 2014e: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VI], AQUI.
-----------, 2014f: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VII], AQUI.
-----------, 2014g: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VIII], AQUI.
-----------, 2014h: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [IX], AQUI.


quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

022. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [19]
          em Duas Horas de Leitura (1857) [IX]


[Continuação do post anterior]


Com se leu no post anterior, os quatro peregrinos que partiram do Porto com Braga (Bom Jesus do Monte) por destino - Camilo, Evaristo Basto e os irmãos Luís e José Barbosa e Silva - encontram-se já em Braga e romancista, a dada altura, foi «comprar uma folha de papel para escrever para a terra.» Daí que,

ANTES de entrarmos no correio, paramos, em frente do portão, enlevados n'um cartaz, lavrado em lettra cursiva de bom tamanho e aprimorada fórma. Lêmol-o, e L[uís] B[arbosa e Silva], a meu pedido, copiou-o textualmente.
O leitor erudito, d'oculos e pitada nos dedos engatilhados, queria antes que lhe déssemos a copia de alguma inscripção romana. Que me importa a mim o que os romanos escreveram?! Digam-se e escrevam-se cousas que prestem alguma utilidade á gente. O que passou passou, e nós vamos passando.
Do saber ler ha um só partido que tirar: aligeirar o tempo agradavelmente. O que por ahi se chama instrucção, erudição, sabedoria, sciencia, é a mais ôcca das vaidades humanas.
O homem que morre, dizendo: “li muito” é um suicida, um nescio que se desherda dos prazeres da vida, um celibatario de todas as patuscadas humanas, que não serviu, sequer, para entreter senhoras n'uma sala.
Eu estou curado da febre intermitente do estudo, desde que a minha boa directora domestica, economica, gastronomica, e até espiritual, me disse que eu escrevia muita onzenice que não valia nada “Que importa saber o que disseram esses homens do tempo do Bofelhas?!” pergunta ella, e tem razão. “Se a gente podesse saber — accrescenta — o que ha-de vir, então valia a pena estudar; mas saber o que passou é não ter em que empregar o tempo!”
Bem haja ella que me revirou o sestro das onzenices por melhor caminho. [Branco, 18582: 143-144]

A «boa directora domestica, economica, gastronomica, e até espiritual» era, muito provavelmente, Isabel Cândida Vaz Mourão. Também, com toda a certeza, a destinatária da carta que o Escritor tinha ido depositar nos correios. «Freira do Convento de S. Bento da Ave-Maria, do Porto, […] manteve com Camilo uma prolongada relação amorosa.» [Cabral, 1989: 427] Esta relação terá começado em 1850 e ter-se-á mantido ao longo de vários anos. «Por volta de 1854, quando o romancista mandou vir a filha de Vila Real para a sua companhia, Isabel Cândida conheceu a menina, Bernardina Amélia [filha de Patrícia Emília de Barros, uma das primeiras amantes de Camilo [cf. Cabral, 1989: 57-58], passando pouco depois a cuidar da sua educação. Educação de que continuou a cuidar e a suportar até 1865, ano em que, sob o patrocínio desta «senhora rica e culta», Bernardina Amélia casou com o capitalista António Francisco de Carvalho. Isto, mesmo depois de, sete anos antes, Camilo ter-se desligado de Isabel Cândida, para se entregar de corpo e alma a Ana Plácido. [Id.: 428]
Recorde-se que a excursão dos quatro amigos se realizou na primavera/verão de 1856 e, nessa altura, a ainda amante e protetora de Bernardina Amélia era a freira do Convento de S. Bento da Ave-Maria. Hei-de voltar a falar, em posts futuros, destas relações, a propósito de cartas de Camilo para os irmãos Barbosa e Silva, e sobretudo da morada do escritor, durante cerca de dois meses, em Viana, no ano de 1857.
Voltemos, então, ao relato/crónica do passeio «Do Porto a Braga».

[Camilo - Desenho de Júlio Pomar para 1.ª edição d’O Romance de Camilo, de Aquilino Ribeiro, editado em 1956. A imagem encontra-se no Boletim Cultural da Fundação Calouste Gulbenkian, n.º 4 (VII Série), outubro de 1991, dedicado a Camilo: o Homem e o Artista.]

O resto do cap. [VIII], Camilo dedica-o a pôr em confronto a «civilização», isto é, os comportamentos socioculturais entre os habitantes de Braga e Porto. Nem uns nem outros ficam lá muito bem no retrato que deles faz o Escritor. O leitor (re)encontrará um capítulo cheio de graça e humor, resultado do recurso à ironia e por vezes ao sarcasmo. A propósito, permito-me remeter para o post «“A excellencia de carnaval” (1856)», que publiquei no meu blogue Cortesia Linguística, com trechos retirados precisamente deste cap. de «Do Porto a Braga».

Mas qual foi, então, o cartaz que tanto enlevo causou em Camilo e que, segundo ele, «revê a actualidade, e significa alguma cousa nos tempos que correm»? Ei-lo:

“Peira, Dentista e Cirurgião.
“Põe toda a sorte de dentes artificiaes. Limpa
“os dentes. Extrae-os com a maior Destreza, e
“raizes. Firma os que estão abalados cortando-os
“arralando-os e pondo-os em boa direcção. Tira-
“Ihes a dôr, chumba-os. Tira o máo cheiro da
“bocca. Tira verrugas, cravos e calos. Tira a bicha
“solitária.
“Residente á onze annos na cidade de Braga e
“ao presente na Hospedaria do snr. Fanqueira no
“Campo de Sanct’Anna n.º....” [Id.: 144]

E o Escritor comenta, de seguida:

Eis-aqui outro Herodes da bicha solitaria! Convidei os meus amigos a procural-o em casa do senhor Fanqueira. Eu queria desmentir com este doutor em dentes o outro doutor lá de cima, e provar que M. Peira, vindo naturalmente de Paris para Braga, disputa a Gondifélos a efficacia da mézinha. Os meus amigos não annuiram. Algum dente que ainda me resta, como sentinella perdida em arraial onde se deu grande batalha, queria eu entregal-o a Mr. Peira, para que elle m'o firmasse, cortando-o; processo novo de certo, mas facil para quem extrahe um dente com a maior destreza c raizes; o que eu não sei é se elle tambem extrahe raizes com a maior destreza, e dentes. Recommendo, porém, Mr. Peira, não só a quem tiver verrugas, cravos, e callos, mas tambem á authoridade administrativa e aos vigias da camara, se lá os ha. Um cartaz destes deve considerar-se entulho, e o cirurgião que tira cravos é melhor para os trazer que para os tirar. [Id.: 145-146]

[Continuará]

NB1 – Foi respeitada, nas citações, a grafia da edição consultada.
NB2 – O retrato a meio corpo do Escritor foi colhido em Google+ / Imagens / Camilo Castelo Branco.

LEITURAS
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
CABRAL, A., 1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho.
RODRIGUES, D. F., 2013: «”A excellencia de carnaval” (1856)»,em AQUI
-----------, 2014: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [I], AQUI
-----------, 2014a: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [II], AQUI.
-----------, 2014b: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [III], AQUI.
-----------, 2014d: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [V], AQUI.
-----------, 2014e: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VI], AQUI.
-----------, 2014f: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VII], AQUI.
-----------, 2014g: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VIII], AQUI.