sexta-feira, 4 de abril de 2014


008. Viana em Camilo / [«Tramoias d'Esta Vida» (1863)b*]



Terminava o post anterior perguntando se João Moreira, o brasileiro português de Esposende, protagonista destas tramoias camilianas, depois de chegar a Viana a caminho de Valença, teria encontrado aqui o soldado que havia avistado, para as bandas de Castro Laboreiro, Balbina Rosa.
Encontrou, sim senhor. José Torto, o tal soldado que havia reconhecido a sua conterrânea desaparecida, quando escoltava uns presos dos Arcos [de Valdevez] para outro ponto [ou seria posto?], estava no quartel. O comandante autorizou que o soldado n.º 24 da 4.ª companhia acompanhasse o tio de Balbina a Castro Laboreiro. E foi assim:

«Chegaram ao romper da manha do segundo dia de jornada aos montados de Entrime, e do pincaro mais levantado descortinaram em deredor os rebanhos que iam subindo das povoas escondidas nas gargantas da serra. Foram á falla com o primeiro pastor, que avistaram, e descobriram que havia em Castro Laboreiro uma rapariga ao serviço de um lavrador, vinda de longe, e chamada Francisca. Os signaes d’esta Francisca exactamente condiziam com os de Balbina. Devia ser ella. D’ali baixaram ao outeiro onde o soldado a topara, e, por felicidade de todos, ao dobrarem o cotovello de um barrocal, entreviram, ao travez da ramagem de uns carvalhos, a pastora, sentada á borda de um regato, que devia ser um braço da ribeira das Varzeas, a qual por ali se infiltra na aridez d’aquelles algares.» [Branco, 19083: 84**]





     {Será que Camilo se escondeu nestes montes e vales alto-minhotos quando, em 1860 (três anos antes da escrita e publicação de «Tramoias»), andou fugido, para não ser preso, com receio de ser degredado para África, na sequência do processo de adultério desencadeado pelo marido de Ana Plácido (1831-1895), Manuel Pinheiro Alves (1807-1863)? Talvez. O escritor mostra conhecer bastante bem a paisagem. Recorde-se que Ana Plácido tinha sido presa, em 6 de junho de 1860. Camilo acabou por se entregar quatro meses depois, a 1 de outubro. Cf. Cabral, 1989: 221, 2.ª col. Leia-se, também, Memorias do Carcere (vol. I), onde o Escritor nos conta a história da prisão do «senhor padre Manoel dos Arcos [de Valdevez]», seu colega presidiário na Cadeia da Relação do Porto, depois de ter estado na de Braga, por causa de «uns amores» com «uma mocetona» daquele concelho. [Cf. Branco, 18642: 160-166]}




Confirmados a identidade e parentesco, por um lado, e acordado o termo do trabalho da pastora, por outro, todos regressaram satisfeitos aos seus sítios e afazeres. Todos, menos Bernardo, filho do lavrador ex-dono da ex-criada ex-Francisca. O rapaz ficou inconsolável: amava a moça, coitado.
Empinado no cimo de uma colina, vê-a partir, saudoso e sofrido, afundado em lágrimas. E o autor-narrador aproveita para, num recorte ultra-romântico, associar as amarguras do amor não correspondido às agruras da agreste paisagem:

«Que alma de poeta soffreu já ahi cruz de saudade tão dolorosa? Que lagrimas se secaram n’aquellas penedias broncas! O desventurado lançou-se por terra e escondeu a face nas urzes. As suas lagrimas, ó traspassada alma, podia vêl-as o ceu, que eram puras!
[…]
Ninguem mais fallará de ti, pobre solitario das montanhas!
Vai chorar á margem d’esses regatos! As flores silvestres te dirão que as lagrimas de Balbina as fizeram reviçar em suas hastes ressequidas. Afaga esse cão que lhe lambia as mãos. Ahi tens a rez que se aninhava no regaço d’ella. […]
Ella lá vai!... Se alguma vez a vires, dirás comtigo:
– Parecia-se com esta fidalga uma pastorinha que eu amei, e ainda agora amo, nas minhas serras do Laboreiro!»



Pois, de facto, como fidalga deveria passar a viver, sob o mesmo luxuoso teto e fora dele, a sobrinha com o tio, uma vez chegados à residência do Porto. Porém (e repare-se como, na grande cidade, a filha da taverneira de Esposende é tratada),

«D. Balbina Rosa Moreira tinha criadas, que mal a conheciam, carruagem em que nunca sahia, e ricos vestidos que nem sequer examinava. / O tio passava em conversação com ella o maior numero de horas, bem que a historia da sua desgraça quiz ouvil-a uma só vez. / Tiral-a da solidão do seu quarto, fazêl-a erguer mão da costura, leval-a a theatros e recreações é que nunca vingara. Balbina, com a branda defeza das lagrimas, além de vencer, acareava a mais o amor do velho.»

É logo a seguir a esta transcrição que aparece a segunda referência explícita a Viana. Ao fim de um mês, João Moreira regressa aqui e logo depois ao Minho.
Para quê?

«Planeou o velho uma traça de vingança incruenta sobre o descaroado deshonrador de sua sobrinha. Na urdidura da trama é que elle anda. / Informou-se, e soube que o morgado de Pinhatel está hipothecando as suas propriedades, restantes da doação, que a consorte divorciada judicialmente levantou.»

“Afinal, havia outra!” – dirá o experiente leitor, das vidas deste mundo real e do mundo possível que as novelas camilianas o primeiro dramaticamente representam.
Havia: Perpétua: uma fidalga mais viva que o morgado. E tão vivida quanto ele, pelo menos, ou seja, nos máximos. O rico Gastão gastou (a aliteração e paronímia, aqui, ficam bem) com ela o resto dos bens que ainda possuía, até ficar pobre, paupérrimo, a viver de esmolas.
Assim começou esta sua nova relação, com esta sua nova amante:

«Aconteceu ver ele uma dama deslumbrante, de família genealógica, maior de vinte e oito anos, galhofeira, fascinadora, amestrada e esperta, á custa dos logros da poesia; prosa, em fim, mas belissima prosa. Amou-a; foi acolhido, e logo repellido; d’ahi a pouco amado, e outra vez aborrecido; um dia, requestado, e, no seguinte, desfeiteado. A resulta d’isto foi um dia casarem-se, com escripturas cavilosamente vantajosas para a noiva, que já sabia com quem as havia de ter.»

E depois? Bem, depois, terá o leitor de conhecer, lendo, em «Tramoias desta Vida», as relações de íntima aproximação e logo de violento afastamento que este casal de fidalgos mantém e suporta, até que o divórcio os separe. Entretanto, leitor, aprecie esta pérola:

«Rompeu a desordem. Gladiaram-se de língua até se retirarem de punhos cerrados cada um para seu quarto. Não se viram oito dias; e, para se verem, foi mister que o vigario interviesse na reconciliação com o Evangelho em punho, posto que para o caso sujeito tanto valesse o Evangelho, como o Alcorão. E tanto isto é verdade, que, quinze dias passados, assanharam-se de novo, e o padre voltou com o Evangelho, e sahiu corrido do que ouviu a respeito da religião. É que D. Perpetua, no acume do seu odio á aldêa, negava Deus; e Gastão, se já não fosse atheu, nem houvesse atheus, inventava-se atheu por ter havido um Deus que fez similhante mulher!»

Enquanto leem as tramoias em que se meteram – D. Perpétua, lá por Lisboa, D. Gastão de Mendonça, cá pelo Minho – sempre lhe direi que, para recuperarem algum estatuto social e económico, os dois desgraçados fidalgos contaram, uma e outro (ele, no Minho, mais que ela, em Lisboa), com a caridosa, generosa, preciosa ajuda e perdão de D. Balbina Rosa Moreira e do seu tio senhor João Moreira. Depois de mútuo acordo de vontades e sentimentos, cordial e religiosamente conversado, consentido e celebrado.
Morreram, pouco tempo depois. Ele, primeiro, e realmente. Ela, simbolicamente, ao recolher-se, oito dias depois, a um dos três conventos seus preferidos, e depois, de facto, entre finais de 1854 e princípios de 1855. E um desses conventos situava-se aqui em Viana.

«Morreu João Moreira. / Vários sujeitos do Porto, estimaveis a todos os respeitos, quando souberam, com o seu olphato de córvos inoffensivos, que o brazileiro era cadaver, e deixara uma sobrinha muito rica, rodearam os testamenteiros, uns allegando que eram gentis-homens, outros mostrando que eram homens gentis, outros recenseando a “fortuna” que esperavam reunir depois da morte de quatro tias e sete tios decrepitos. Os testamenteiros respondiam que escassamente conheciam a sobrinha do defunto, e sabiam que ella ia recolher-se no mosteiro de Villa do Conde, Vianna, ou Vairão. Estes galãs saíam atónitos da seráfica brutalidade da herdeira. E attribuiam a mania á influencia dos fautores do Immaculado Coração de Maria, por não terem ainda os Lazzaristas á sua disposição.»

Mas que mosteiro seria esse?
Nem mesmo depois de morta esta mártir-heroína do amor (como tantas outros protagonistas femininos de novelas camilianas) o autor-narrador revela o convento, dos três por ela preferidos, onde entrou e onde, a breve termo, se finou, possivelmente, em finais de 1854. Indica apenas que, no começo do ano seguinte, um personagem deste conto foi «á portaria do mosteiro de*** perguntar pela saude da secular Balbina Rosa Moreira.» Como tinha feito, antes, quatro vezes em cada ano, sem, contudo, nunca ter chegado a vê-la.

E quem seria esse personagem? O escritor identifica-o. Mas prefiro propor ao leitor deste post que ainda não chegou ao fim das tramoias destas vidas por Camilo contadas, que coloque, a seguir, a cruz, na quadrícula correspondente à hipótese mais provável. Recorde que o conto é, como advertiu o autor, moral.


Que personagem, em «Tramoias d’Esta Vida», ia ao mosteiro saber de Balbina Rosa?

a) O velho fidalgo Gastão de Mendonça?

b) O soldado do regimento de Valença, José Torto?

c) Bernardo, o filho do lavrador de Castro Laboreiro?

d) O lavrador de Castro Laboreiro?

e) D. Perpétua?

f) Outro? (Neste caso, quem? R:________________________________________)


Foi, certamente, alguém que viveria não muito distante desse anónimo convento. Que bem podia ser o de Sant’Ana (1510-1895) ou o de S. Bento (1550-1891) [cf. Alpuim, 1979; Pinho, 2009 e 2010], que eram dois conventos femininos que em Viana ainda existiam, na altura, e para onde poderia ter entrado, nos primeiros anos de 1850, a secular Balbina Rosa Moreira.


Estes conventos eram ambos beneditinos, localizados, curiosamente, muito próximo um do outro, nesta nova cidade de Viana do Castelo. Nova, porque a vila de Viana do Minho havia sido elevada à categoria de cidade, por carta régia da Rainha D. Maria II, em 20 de janeiro de 1848, com a designação de Viana do Castelo. Mas que, durante largos e largos anos, continuou a ser identificada e (re)conhecida, na fala e por escrito, simplesmente por Viana, afetivamente. Viana que o homem e escritor, digo, homem-escritor Camilo, à sua particular maneira crente e religioso, por um lado, e curioso e inquieto andarilho, por outro, bem conhecia. Por ter visitado e percorrido, sozinho ou seguido pelo seu inseparável Martírio (cão), ou na companhia dos seus mais fieis amigos vianeses, os dois irmãos José e Luís Barbosa e Silva.

As muitas e, por vezes, extensas referências que o grande escritor faz, com maior frequência a Viana do Castelo, mas também a outras terras do Alto-Minho, são a prova indelével das relações que Camilo estabeleceu e firmou com esta cidade e esta região. Como acontece em Cenas da Foz (1857) e A Bruxa de Monte-Córdova (1867), como já mostrei em Rodrigues 2013, e acabei de mostrar, neste e no post anterior, em «Tramoias desta Vida» (1863), posts estes que são resumos do artigo publicado em Rodrigues, 2013a.

Hei de continuar, em futuros post, a ler e a dar a ler como, também em outras obras, Camilo perpetua o nome da cidade de Viana do Castelo. O que, para bom entendedor…

* Este post, continuação do anterior, é uma versão reduzida (e adaptada ao presente formato e tipo de edição), de parte de artigo publicado no tomo 47 (2013) Cadernos Vianenses. [Cf. Rodrigues, 2013a)
** A fim de não sobrecarregar o post, com as páginas das citações, informo que a narrativa ocupa, na edição consultada [19083], as pp. 71 a 112, e que, de ora em diante, as citações efetuadas neste texto se encontram entre elas, passim. Mais informo que citações não ipsis verbis vão em itálico.

NB - O desenho da imagem representando um serrana de Castro Laboreiro é de Manuel Couto Viana e foi retirada de Roteiro de Viana, 1969, s/p. «A Mulher de Castro Laboreiro» seguinte encontra-se AQUI.

  
LEITURAS
ALPUIM, Maria Augusta d’, 1979: «Carmelitas em Viana». Cadernos Vianenses (Tomo II). Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 124-132.
BRANCO, Camillo Castello, 19642 (1.ª ed. 1862): Memorias do Carcere (vol. I). Porto: Casa Viuva Moré – Editora.
----------, 19083 (1.ª ed. 1863): «Tramoias d’Esta Vida», em Noites de Lamego. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira; pp. 71-112.
CABRAL, 1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho. (2.ª ed., 2003).
PINHO, Isabel Maria Ribeiro Tavares de, 2009: «As Carmelitas do Desterro de Viana do Castelo», em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/9421.pdf (Consulta em 25-10-2013).
----------, 2010: Os Mosteiros Beneditinos Femininos de Viana do Castelo -  Arquitectura Monástica dos Séculos XVI ao XIX (2 vols.). Porto. (Dissertação de Doutoramento em História da Arte Portuguesa apresentada à Faculdade de Letras da Universidaxde do Porto), em: http://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/53882 (Consulta em 25-10-2013).
RODRIGUES, David F., 2013: «Viana & Camilo – Presenças e situações». A Falar de Viana (Vol. II, Série 2). Viana do Castelo: Vianafestas, pp. 205-213.
----------, 2013a: «Viana em Camilo: [“Tramoias d’esta Vida” (1863)]». Cadernos Vianenses, Tomo 47. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 113-127.
----------, 2013b: Viana em Camilo / [«Tramoias d’esta Vida» (1863a)]. AQUI.
VIEIRA, José Augusto, 1986/87: O Minho Pittoresco (Tomo I e II). Valença: Rotary Clube de Valença; p. 3. (Reedição da 1.ª ed., 1886/87, Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira).

                                                                                                                                                   [Continuará]