segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

019. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [16]

         em Duas Horas de Leitura (1857) [VI]


[Continuação do post anterior]

«A  HISTORIA da tenia não acabou ainda, leitor pacientissimo! Não lhe esqueça que L[uís] B[arbosa], posto que não seja poeta visionario, tambem imaginou uma [ténia] como os poetas imaginam virgens.» [Branco, 18582: 117] 

Assim retoma Camilo, logo no início do cap. V da crónica «Do Porto a Braga» (inicialmente intitulada, recorde-se, «Peregrinação sobre a Face do Globo»), incluída no volume Duas de Leitura (rever AQUI), a consulta que três dos quatro amigos fizeram, em Famalicão, ao «doutor em medicina verminosa». Do resultado que obtiveram José Barbosa e Silva e Camilo já se relatou nos posts anteriores [rever AQUI e AQUI]. Chegou, como já se previu, a vez de Luís Barbosa e Silva, que o Escritor, continuando, narra assim:

«Poucos rostos tereis visto mais sadios, mais medrados, e menos expressivos da existencia de um parasita que se approprie o chymo d'uma digestão empeçada. L. B. é atascado de boas carnes, goza as apparencias d'uma enfadonha saude, e, a não ter guapas e espessas barbas, recordaria a nediez e o chorume d'um frade Bernardo, de gorda memoria. D'onde lhe veio a suspeita da solitaria, isso é que eu não sei, nem o doutor em medicina verminosa soube tambem.
Eu de mim, suspeitando-a, tinha desculpa, porque me vejo deáphano como um sylpho, leveiro como um dos gnomos mensageiros de Oberon, e resequido como folha do outomno.
Nada mais razoavel, nas minhas circumstancias, que imaginar-me preza de todos os vermes de Raspail. E indispensavel a existencia de um bicho burlista que me empalma o chylo convertendo-o em substancia sua, com grave detrimento do meu tecido adyposo que se vai encorreando como a polpa de uma solha escallada. A não ser isto, por mais que me digam, deram as bruxas comigo!
J[osé] B[arbosa] tem, não digo cincoenta por cento, mas ao menos uma probabilidade de solitaria, por isso que a tristeza, o aborrecimento, e o desconforto são symptomas moraes, ás vezes, mais persuasivos que os physicos.
Se nem elle nem eu, investigados pelo doutor, tivemos a felicidade de alojar o verme, com que juz L. B. ousa nutrir a ambiciosa suspeita de ser a urna de um annellido com oitenta braças?! Que arrojo é esse de ir sentar-se, depois de mim, em frente do auruspice, que não acha em tres homens reunidos uma polegada de tenia?
Perguntado sobre os seus padecimentos, L. B., naturalmente respondeu que não padecia nada; e o doutor, desesperado de explorar uma victima do seu cosimento, mandou-o erguer, desejando-lhe a continuação da sua boa saude. [Id.: 117-119]



E acabada a consulta, Evaristo Basto, «com a sua delicadeza proverbial convidou o doutor a cear. Aceitou, o mestre, sem fazer-se rogar, porque não quis cercear-nos a gloria de o possuirmos alguns minutos mais.» [Id.: ibid.]

Como decorreu a ceia e como o doutor das lombrigas comia e sobretudo “vovia” e falava doutamente sobre a ténia, terá o amigo leitor deste post / blogue de pegar no livro de Camilo e (re)ler o resto da crónica.  Não está à espera que lhe faça a papinha toda, pois não?...
Mas sempre lhe direi que, após a ceia, os peregrinos de Braga ainda conversaram alguns minutos com o «doutor», sobre a residência e rersistência do verme, cujas afirmações eram seriamente ouvidas entre sorrisos e gargalhadas abafadas. E, a propósito do riso, Camilo reflete:

«N’este tempo em que os acontecimentos comicos inçam a vida de uma sociedade de transição, a hilaridade não cede a pequenos estimulos: o barão tornou-se indigno do riso, o jornalista que apregôa a integridade da sua consciencia para alterar-lhe o preço, passa desapercebido; a escóla de canto da camara municipal portuense não faz rir ninguem; um artigo de fundo, que aconselha ao ministro de instrucção publica o alvitre de a mocidade decorar obrigatoriamente as posturas da camara, para formar por ellas a rectidão do espirito, provoca a lastima, sem desarticular os queixos em estrondosa risada; finalmente, ha uma só coisa que desafia ao leitor um sorriso de piedade: é o conto, á laia d'este, presumido de chiste, pretencioso de sal... sal tartaro, amados leitores. Eu poupo-me, e quero poupar-vos ás grandes gargalhadas, desde que li, não me lembra aonde, que o poeta Philémon morrêra de riso por vêr um onagro comendo figos sobre um escriptorio. Se a gente vai a rir-se de quantos onagros comem figos, rebentam-nos as carotidas !...»

E depois ? – perguntar-me-á já o (im)paciente leitor. Pois foi a seguir lerá:

«A noite ia alta. Cabeceavamos todos e tinhamos de sahir pouco depois. O doutor retirou-se a digerir.
Deram-nos quatro camas n'um quarto. Travou-se lucta de morte, a travesseiro, entre nós, por causa do unico leito de ferro, ingrato ao persovejo. Venceu-o de escalada E[varisto] B[asto].
Deitados, discutimos longo tempo a residencia da solitaria. Eu adormeci praguejando contra a anathomia do doutor: E. B. queria provar que elle era um goraz de casaca. J. B. teimava que o resto da nação, depois da Estremadura e do Alemtejo, era Chaves e Almeida. L. B., com a vella em punho, rebuscava debaixo do travesseiro um persovejo imaginario. A projecção da luz dava-lhe o sombreado mystorioso d'uma avantesma.
Ás trevas seguiu-se o silencio: ao silencio o resomnar profundo.
Uma hora depois fui acordado pelos berros estridentes de E. B.
Amaldiçoei o primeiro homem que mostrou ser possivel levantar-se a gente antes do meio-dia! [Id.: 121-122]

E assim termina o cap. V de «Do Porto a Braga» em Duas horas de Leitura.

Leituras:
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
RODRIGUES, D. F., 2014: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [I], AQUI
-----------, 2014a: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [II], AQUI.
-----------, 2014b: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [III], AQUI.
-----------, 2014d: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [V], AQUI.

NB - O desenho de Camilo é de Júlio Pomar e a fotografia dos irmãos Barbosa e Silva foi colhida AQUI.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

018. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [15]
         em Duas Horas de Leitura (1857) [V]


[Continuação do post anterior]


         Antes de relatar a consulta que os três amigos (J. B, C. C. B. e L. B.) iriam fazer ao célebre «doutor das lombrigas», Camilo penitencia-se, ironicamente, do facto de não se ter informado, em tempo devido, «do nome e sobrenome de um sujeito que vai honorificar a pagina mais imbrincada da minha peregrinação.» E acrescenta, de imediato:

«O meu primeiro cuidado, se eu não fosse um frivolo, logo que me approximei de um homem ao alcance do folhetim scientifico, deveria saber-lhe o nome, a linhagem, as suas manias em criança, e outros muitos adminiculos que vem sempre a pêlo na boa avaliação de um typo distincto.» [Braga, 18582: 109]

Lembra, em seguida, nomes de cientistas importantes pelas descobertas que fizeram, mas, por outro lado, que lhe «arde a cara de vergonha» por não saber «o nome do varão prestante que mata a bicha solitária!» Por isso,

«A coima desta falta só póde descontar-nol-a o esmero que vamos pôr em relembrar as impressões que sentimos — eu e os meus companheiros — nos rapidos instantes que a sua companhia nos deliciou na estalagem real de Villa Nova de Famalicão, onde apeamos no capitulo III.
Os grandes homens perdem, quasi sempre na approximação. Excepções ha, porém; e uma dessas é o illustre mésinheiro. O doutor... (não temos certeza se o é; mas o direito com que lhe outhorgamos ao menos um bacharelato está authorisado pelo arbitrio de similhantes mercês:) o doutor esperava-nos, visto que se lhe annunciou a chegada de uma carroça de victimas da tenia, que vinham de longes climas a consultar o Epydauro de Gondifélos, ou aldêa que o valha.» [Id.: 110]

É ao retrato físico «doutor das lombrigas» que Camilo se entrega. Retrato que lhe permitia adivinhar o do intelectual que tinha à sua frente, pois «a physionomia do doutor era um espelho do espírito. Por ella – acrescenta – via-se quão enrugada e arida por lucubrações antilombrigoides não devia de estar-lhe a alma!» [Id.: 111] Enfim, a sua aparência era de um homem inteiramente dedicado ao estudo e à ciência. Mas o último reparo é para a roupa que o homem usava. Condiria ela com o homem de tal espírito “científico”?...

«A casaca e o collete eram singularidades adscriptas ao talento. O doutor envergava uma casaca por a mesma razão que Rousseau trajava vestidos armenios, e um socialista francez, fautor dos irmãos Moravios, se vestiu de monge cóphta. A natureza talhára ab cetemo para elle a vestia de botões de chifre, até ao sacro, ou o collete de affogadilho até á quarta costella. O genio, porém, sempre innovador, em guerra aberta com a despotica natureza, encadernou-se na casaca ignobil, vulgarisando-se até á planta do regedor de parochia rural, e escrivão substituto do juiz-eleito. Como quer que seja, as mediocridades não podem, sem ridiculisar-se, censurar os desvarios do genio.» [Id.: 113]


E vão começar as consultas. O primeiro a ser examinado foi José Barbosa e Silva [«J. B.»].
                           
«O doutor, outra vez sentado, assumiu o seu ar de prestigio, investiu a realeza do seu merecimento, mediu-nos d'alto a baixo, e exprimiu no sobrecenho a altivez do orador de aldêa que vai dizer quatro prosopopeias a uma chusma de sandeus.
Eu disse a J. B. : — “Senta-te, e consulta o doutor.” Era necessario divertir o spasmo estupido em que todos ficamos.
J. B. sentou-se. Não pude ouvir o relatorio dos seus padecimentos. A sua voz era cava e mysteriosa. Havia alli entre ambos uns visos de caballa, palavras surdas de feitiços, olhares vesgos de coisa ruim.
O doutor ouvia, e o pouco que dizia era accentuado; bamboando solemne a cabeça pyramidal. J. B. tirou os oculos; o doutor procurou a cabeça da tenia na retina, ao que parecia dos seus olhares perscrutadores. N'isto, a um signal negativo do doutor, ergue-se J. B., e diz:
“Não tenho a bicha!]”]
Não poderei descrever-vos o rosto desconsolado do meu amigo, sem tenia!
J. B. queria ter o verme; daria por uma tenia o mais importante dos seus intestinos. A lombriga das cem braças era a sua ultima quimera. Mortas todas as illusões do coração, restava-lhe aquella no abdomen.
Nem essa! nem uma solitaria para companheira no êrmo da vida ao homem que busca dentro em si um outro ego!
O doutor disse, e permaneceu immovel na cadeira, esperando um enfermo mais auspicioso. Devia ser eu!
Com quanto o descrever-me n'esta situação original pertença aos meus galhofeiros amigos, eu vou ter a immodestia de fallar de mim. A sciencia requer estas vaidades, assim como a historia as absolve a Cezar contando as façanhas proprias.
O DOUTOR: Então que sente?
EU: Dyspnéas frequentes : nevroses no apparelho respiratorio; um borborygmo escumoso a partir do esophago: pulsações lancinantes no estomago; beliscadellas ardentes na pelle; e de noite estremecimentos subitos que me despertam...
O DOUTOR (interrompendo-me com um sorriso de intelligencia): isso não são symptoinas physicos; [114] sem symptomas physicos não temos probalidades; a solitaria tem seus symptomas.
EU (mordendo o beiço o mais symptomatica e physicamente que podia para disfarçar uma gargalhada physica.) Além d'isto, sinto uma profunda melancholia, um aborrecimento de tudo, um desleixo por tudo, inactividade para tudo...
O DOUTOR: As probalidades são cincoenta por cento. Ora diga-me: come bem?
EU: Pouco, e sem appetite.
O DOUTOR: Quando se tem a solitaria, come-se bem, e ella ajuda a fazer a digestão. Ora como o senhor não tem symptomas physicos, as probalidades são cincoenta por cento. Deixe lá ver a lingua... Está bom... É preciso fazer certa experiência para termos symptomas physicos. Isto ha-de ser mais devagar.
Disse.
Ergui-me com os cincoenta por cento, e vi que os meus companheiros fungavam a um canto, uma risada, encarando-me com ar de compaixão.
E o doutor, immovel, olhava para a cadeira onde devia sentar-se L. B.
Começavamos todos a sentir que a nossa posição era ridicula. Uma tenia moral fizera graves desmanchos no nosso juizo. O unico dos quatro, superior á zombaria, era E. B. que se não julgava o pabulo d'uma lombriga ideal.
Em holocausto á verdade, declaro que fiz uma plangente figura! Andei vinte e quatro horas, col-[115]leccionando a nomenclatura technica dos meus padecimentos, e tive o descoco de não levar um só symptoma physico, que désse idêa da minha tenia! E pur si muove! A bicha existe!»
[Id.: 113-116]

Leituras:
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
RODRIGUES, D. F., 2014: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [I]. AQUI
-----------, 2014a: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [II]. AQUI.
-----------, 2014b: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [III]. AQUI.
-----------, 2014c: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [IV],. AQUI.

NB - Nas transcrições e citações foi respeitada a grafia das edições consultadas.

[Continuará]

sábado, 29 de novembro de 2014

017. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [14]

         em Duas Horas de Leitura (1857) [IV]



 Ora prosseguindo na apresentação das referências faz aos irmãos Barbosa e Siva (Luís e José), na crónica «Do Porto a Braga», incluída em Duas Horas de Leitura [cf. aqui], veja o leitor amigo o Camilo nos diz, no capítulo III.

Depois de nos descrever as razões por que se considerava «um grande bucólico de estufa» [Branco, 18582: 103], por um lado, e, por outro, se referir à influência das belezas naturais que, segundo as estações do ano, inspiram os poetas, o Escritor avança, a caminho da consulta que, à exceção de Evaristo Basto, iam fazer, em Famalicão, a um tal «bacharel formado em lombrigas». Meditabundos e cansados da viagem iriam os quatro. Sobretudo depois de terem saboreado, na Carriça, os prazeres  gastronómicos e outros de uma tal Mariquinhas.


«[...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...]
Não obstante, na qualidade de viajante, logo que o horisonte se dilatou diante do carro, e os galões sobre melhor pizo diminuiram, aventurei a cabeça fóra das bambinellas para saudar o sol poente.
Ha doze annos, foi aquella a minha hora de poesia. As minhas tristezas doces, os meus confusos devaneios, a minha costella de Petrarcha sem Laura, tive-a então. Hoje acontece-me o que é natural. Vejo, e vi o sol no occidente, pelos olhos da face que pouco vêem de enfraquecidos pelas repetidas ophtalmias dos olhos da alma. O que fiz foi consultar o relogio para calcular o tempo que nos levaria a caminhada á Carriça. Os meus companheiros, mais poetas que eu, iam taciturnos; não é liquido, porém, ainda se o seu silencio era tedio ou poesia.
J[osé] B[arbosa e Silva] quebrou a lethargia, perguntando:
“O homem da bicha está em Villa-Nova? [“]
— É natural — disse E[varisto] B[asto].
Esta pergunta, leitor, devia matar, se ella existisse, toda a poesia da hora, do local, e das circumstancias. Desde aquelle momento, os pinheiros, que bordam a estrada, affiguraram-se-me bichas solitarias; as listas rubidas do arrebol eram tenias; tenias eram os frocos dispersos de pequenas nevoas que se esvahiam no horisonte; e o homem, terror d'esta rainha das lombrigas, pareceu-me, de longe, um mytho.
Deveis saber que L[uís Barbosa e Silva], J. B., e eu imaginamos que alojavamos no intimo das entranhas, cada um, pelo menos, sua tenia. E.B., imaginou tambem que a tinha em casa. Todos quatro combinamos um plano de ataque contra a alimaria que nos devorava os sucos. E. B. prevenira o bacharel formado em lombrigas para que nos esperasse em Villa-Nova; e, para nós, era infallivel, horas depois, estarmos em lucta com o entezoairo cestoide, tœnia cucurbitania de Lamarck.
E assim, antevendo uma velhice sadia, graças á extracção do parasita, saudavamos as boas digestões, um sangue mais puro, um espirito mais desempeçado das roscas do verme, e, sobre tudo, um tecido adiposo que nos habilitasse a exercer, sem desdouro, os cargos do municipio, ou a presidencia de uma junta de parochia illustrada.
Nestas gravissimas reflexões, chegamos á Carriça, e apeamos. A primeira pessoa que vimos foi a Mariquinhas, merendando, salvo erro, uma lourejante posta de pescada fritada em ovos.
[…   …   …   …   …   …   …   …   …   …   …]
Anoiteceu. Saudades amargas da minha cama cobriam-me o coração de crepe. O meu barrete de dormir alvejou-me no horisonte escuro, como um sonho da virgem em ancias por ente querido que se lhe perde. Reclinei a fronte calcinada sobre o peito, e meditei em profundo recolhimento sobre as minhas alparcatas. A intensidade desta angustia não hão-de os homens entendêl-a, nesta épocha de cascalho e mala-posta.
Quando a esta terra vierem barbaros com coração ainda virgem da lepra dos interesses materiaes, haverá então quem comprehenda as attribulações do viajeiro a cabecear do somno. Guardo para esses o entendimento do jubilo com que ouvi dizer:
“Estamos em Villa Nova.”
Ao mesmo tempo, exclamou o tendeiro inquilino nos baixos da hospedaria:
“O homem já cá está em cima.”
— Quem é o homem? — perguntei eu alvoroçado.
“O homem da bicha” — replicou o auspicioso tendeiro.
Na physionomia dos tres, que se imaginavam supplementares á tenia, raiou a luz da esperança.
Subimos pressurosos á sala da consulta.
Agora o vereis.»

[Branco, 18582: 103-107]

       Pois é, mas isso é o que meu amigo verá / lerá no próximo post. Camilo termina estrategicamente neste ponto o terceiro capítulo. A «história da ténia» continua nos próximos caps. do livro e, logicamente, nos próximos posts deste blogue.


Leituras:
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
RODRIGUES, D. F., 2014: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [I]. AQUI
-----------, 2014a: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [II]. AQUI.
-----------, 2014b: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [III]. AQUI.

NB - Nas transcrições e citações foi respeitada a grafia das edições consultadas.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   [Continuará]

domingo, 23 de novembro de 2014

016. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [13]

          em Duas Horas de Leitura (1857) [III]




Apresentei, no post anterior, «o vulto moral» de L. B. [Luís Barbosa e Silva], descrito por Camilo, no capítulo II, da crónica «Peregrinação sobre a Face do Globo» / «Do Porto a Braga» [ver aqui]. O Escritor faz, em seguida, o retrato psicológico de E. B. [Evaristo Basto], de quem era amigo «há oito anos, e o mais antigo de todos» [Branco, 18582: 97; ver Cabral, 1989: 58-59]. Deixarei este E. B. de parte, por não ser de Viana. O último companheiro da «peregrinação» a ser retratado é J. B. [José Barbosa e Silva], irmão de Luís Barbosa e Silva, e cujos dados biográficos tenho vindo a referir, em vários posts deste blogue. Para eles remeto, por isso.
[Todavia, sínteses da sua vida a nível familiar, político e social, a par das suas íntimas relações de amizade com o Escritor, encontram-se também em Cabral, 1989: 51-53, 1984 (I): 33-42, Teles, 2007: 376-377, e Vasconcelos, 1991 e 1999. Além disso, é fundamental conhecer a imensa correspondência que Camilo enviou a José Barbosa e Silva e seus irmãos Luís e Mateus, publicada por Cabral, 1984 (I) e (II), e parte por Barbosa, 1919 e por Teles 2008. Pena é que a correspondência de José Barbosa e Silva para Camilo tenha sido destruída.]



Passemos, então, ao «vulto moral» de José Barbosa e Silva (1828-1865), segundo Camilo, em Duas Horas de Leitura, narrativa «Do Porto a Braga», passeio, recorde-se, realizado no ano de 1856, tinham Camilo e Luís Barbosa e Silva 31 anos de idade e José 28.

«J[osé] B[arbosa e Silva].
LÊSTES VIVER PARA SOFFRER? Se tivestes o tacto de respigar n'um livro, aqui e alli, o coração do author, achal-o-hieis. Não vos quero denunciar aonde, porque a amizade não dá azo a tanto. Surprehendam-no lá, se podem; que eu lh'o diga, não. Vede a physionomia serena deste homem: envejar-lhe-heis a paz intima, o recolhimento ditoso em que parece adormecida aquella alma, no seio da bemaventurança. Não o julgueis assim. Lá dentro vão tempestades como as dos bellos lagos de Italia, que se não bolem sequer agora, á crispação de uma briza, e tem dentro a vaga que logo se levanta com o dorso irriçado de tormentas. Alli não está só o poeta que vive

Morrendo por um nada,
Que desejado afllige, e havido enfada. (*)

Ha mais, ha o peior das chimeras mortas, o veneno d'ellas que fica, depois que o verme da saudade lhes sorveu os succos bons. E d'ahi, aquella immersão em tristeza profunda, d'onde não ha salval-o, sem que a sezão tenha cumprido sua phase. Noite alta, a insomnia trava-lhe da imaginação affogueada, e o visinho do seu quarto, ao amanhecer, escuta os passos monotonos do authomato, que se move, em quanto a alma, desatada do corpo, corre triste fadario. Não sabeis de certo o que é o enojo da vida, sem desejar a morte, porque a zombaria da esperança cava-nos abysmos, e, se nos vê em perigo de resvalar, transforma-nol-os em flores, mas flores com espinhos sempre. Oh! meu Deus! não é melhor ir com os olhos postos nas estrellas, e cahir de chofre em um poço, como o phylosopho grego?! Este morrer a retalhos, para nós que não somos ténias, é sobremaneira indecoroso!
Não cuideis, porém, que J. B. é algum Manfredo de faces cavadas e cabellos hirtos, como elle se pinta nas edições illustradas de L. Byron. Maravilha é vêl-o, no baile, modêlo de obsequiosas finezas ás damas, e esmerando-se em não esquecer os cavalheiros. O sorriso de convenção, o ademane cultivado lá fóra em alguns annos de viagens, obedecem-lhe sempre, e dão-lhe um ar de contentamento que muito deve penhorar os donos da casa; e assim é bom para que não fiquem só penhorados os que se retiram, já que os jornaes não permittem outra coisa.
J. B., officioso por educação, conhece que não póde furtar-se aos obsequios com que a sua ampla roda procura galardoar-lhe o merecimento.
N'esta tarefa, de que Deus me livre pela sua infinita misericordia, consome J. B. muitas horas que precisaria, se a litteratura não entrasse na sua educação simplesmente como ornato. Não obstante, a applicação, a paciencia, e a vontade tenaz, n'outra épocha, fizeram que elle, aos vinte e oito annos, conheça linguas e a litteratura de cada uma, tanto quanto a sua modestia, e algumas vezes a sua indole acanhada, fazem por esconder aos que o não têem acompanhado no seu progressivo desenvolvimento.
Ahi estão os meus companheiros.
Agora, ides de certo pasmar, se eu vos disser que nenhum d'elles é sequer, commendador!»

(*) F. d'Alvares do Oriente. [Nota de C. C. B.]

[Branco, 18582: 97-98]


Além de político do partido liberal (deputado, por Viana do Castelo e adido em Paris, entre outros cargos) José Barbosa e Silva dedicou-se também às letras (poesia, romance e jornalismo). Camilo apoiava e incentivava esta atividade do amigo vianês, promovendo-lhe a publicação, em jornais do Porto e de Lisboa, de poemas, crónicas e, em folhetins, o romance Viver para Sofrer (1855). Dedicado aos irmãos e subintitulado Estudos do Coração, este romance, com benevolente prefácio de Camilo (pp. 5-16), apesar de impresso nunca chegou, porém, a entrar no mercado. Como se sabe, a abastada família Barbosa e Silva e, em particular, o José, eram o pronto socorro a que o Escritor frequentemente recorria, nos seus apertos financeiros ou estados psicológicos de abatimento.
Camilo integrou, depois, o prefácio de Viver para Soffrer, no volume Esboços de Apreciações Litterarias (1865: 39-49).


Oportunamente, dedicarei um post (ou mais) ao Viver para Sofrer – Estudos do Coração. Entretanto, em próximo(s) post(s) continuarei a apresentar referências aos irmãos Barbosa e Silva em Duas Horas de Leitura.





Leituras:
BARBOSA, L. X. 1919: Cem Cartas de Camilo. Lisboa: Imprensa Portugal-Brasil.
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
-----------, 1865: Esboços Esboços de Apreciações Litterarias. Porto: Viuva Moré, Editora.
CABRAL, A., 1984: Correspondência de Camilo Castelo Branco com os irmãos Barbosa e Silva [I] e com Sebastião de Sousa [II]. Lisboa: Horizonte.
----------- 1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho. (2.ª ed., 2003)
SILVA, J. B., 1855: Viver para Soffrer. Estudos do Coração. Porto: Typ. de J. J. Gonçalves Basto.
TELES, M. T., 2007: Os Manuscritos Gertrudes. Uma portuense apaixonada por Camilo. Lisboa: Guerra e Paz.
-----------, 2008: Camilo e Ana Plácido – Episódios ignorados da célebre paixão romântica. S/l: Caixotim Edições.
VASCONCELOS, Maria Emília Sena de, 1991: «Os Barbosa e Silva, de Viana, e Camilo». Cadernos Vianenses, Tomo XV. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 111-127. Disponível também AQUI.
----------- 1999: Velhos vultos de Viana». Cadernos Vianenses, Tomo XXV. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 45-54. Disponível também AQUI.

NB - Nas transcrições e citações foi respeitada a grafia das edições consultadas.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                     [Continuará]

sábado, 15 de novembro de 2014

015. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [12]

          em Duas Horas de Leitura (1857) [II]



              No capítulo II, da crónica «Peregrinação sobre a Face do Globo» / «Do Porto a Braga» [ver post anterior], Camilo traça «o vulto moral» dos seus companheiros de viagem. O primeiro de quem faz o retrato, sobretudo psicológico, é L. B. [Luís Barbosa e Silva]. Segue-lhe E. B. [Evaristo Basto] e, por último, J. B. [José Barbosa e Silva].
            Em posts editados ou referenciados [ver AQUI] neste blogue, abordei já, por várias vezes, dados biográficos sobre a abastada família vianesa Barbosa e Silva, em particular, sobre o filho mais novo, José, o grande amigo do Escritor.
            Acrescentarei, agora, alguns dados sobre a vida de L. B. Dados mais desenvolvidos sobre esta família encontrará o interessado em Vasconcelos, 1991 e 1999, e Cabral, 1989: 51-54.
            Fazendo uma breve biografia de L. B., Alexandre Cabral regista, entre outros, os seguintes dados:

«Luís Barbosa e Silva (1825-1892), como o seu irmão mais novo, foi íntimo amigo de C. C. B., com quem aliás, depois da morte do benjamim (José Barbosa), manteve relações epistolares. Figura preponderante da sociedade vianense, dedicou-se particularmente ao comércio. Na verdade, o clã Barbosa e Silva, com outras famílias influentes, dominavam por completo a vida social de Viana do Castelo, inclusive a política.
[…]
Existe na Casa-Museu de Camilo, em São Miguel de Ceide, um lote de 13 cartas de L. B. e S. a C. C. B., que abarca os anos de 1877 a 1886. Encontramos numa delas informações interessantes sobre o guerrilheiro espanhol D. Santiago Garcia e Mendonça e o período conturbado de 1846. Camilo recorria a uma fonte segura para a recolha de elementos destinados à sua obra Maria da Fonte. Com efeito, Luís Barbosa e Silva, à data do surto revolucionário, era tenente da 5.ª companhia do batalhão fixo em Viana.» [Cabral, 1989: 53]

Alexandre Cabral, por outro lado, reuniu e publicou 24 cartas de C. C. B para L. B. S., seguida cada uma de breve comentário, sendo a primeira datada de 27-05-1857 e a última datável de 25-07-1885 [cf. Cabral, 1984 (II): 130-158].

Eis, agora, o «vulto moral» que o Escritor traça de Luís Barbosa e Silva, no cap. II da narrativa «Do Porto a Braga», incluída em Duas Horas de Leitura:

«L. B. é o typo completo da estremada bondade. Obriga-vos a estimal-o, antes de vos dar de si e das suas qualidades uma ideia justa pela convivencia, e pelo tracto. Tem a alma no semblante. A delicadeza com que vos acolhe chega a ser carinho, sem effeminação, sem o nauseento melindre dos affectados das salas, que julgam estar sempre em trocadilho de finezas com mulheres tôlas. Tem trinta annos, e falla-vos com a madureza dos cincoenta. Não é porque as paixões da mocidade o envelhecessem prematuramente. L B., a meu vêr, rebate os golpes do amor, que incommoda, com o escudo da prudencia. Domina-o a cabeça mais que o coração, se estas duas potencias travam peleja. São em pequeno numero os dotados deste temperamento; e, se a excepção, com o andar dos tempos, viesse a ser regra, a humanidade seria um congresso de anjos, e os fazedores de romances e dramas sanguinarios podiam tractar d'outra vida.
L. B. falla pouco, e nem sempre escuta os que lhe fallam. Abstrae-se, e, para não desconsolar o fallador, dá á cabeça o movimento regular d'uma pendula. Se lhe contaes aventuras de rapaz, escuta-vos com religiosa attenção; mas não espereis uma revelação por outra. O mais que faz é rir-se comvosco das vossas veleidades, e alguma vez da fatuidade com que irriçaes a juba do leão. Não julgueis que o seu sorriso é de credulidade. A bondade não tolhe os foros da critica. L. B. conhece perfeitamente os parvos, e, sabendo em que mundo está, tem o bom siso de os respeitar. Sem isso, elle não teria cathalogado uma excellente collecção de anecdotas contemporaneas, que traz frisantes e salgadas sempre, sem descobrir a creatura ridicula dellas. Resta-me dizer-vos, com grande espanto vosso, que L. B. não é litterato, nem dramathurgo, nem jornalista, nem se quer poeta! Falla e escreve um portuguez chão, desenfeitado, correcto, e claro como a sua physionomia, como as suas intenções, como a sua excellente alma. Homem — e diz-se tudo assim — que lhe merecer a amizade, tem encontrado as delicias de Seneca, o thesouro de Sancto Agostinho, e a pedra philosophal do seculo XIX.
[Branco, 18582: 93-94]

NB1 – Na transcrição foi respeitada a grafia da edição consultada.
NB2 – As fotografias acima reproduzidas foram retiradas de Vasconcelos, 1991: 115 (L. B. S.) e 121 (C. C. B.)

Leituras:
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
CABRAL, A., 1984: Correspondência de Camilo Castelo Branco coms os irmãos Barbosa e Silva e com Sebastião de Sousa (Vol. II). Lisboa: Horizonte.
----------- 1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho. (2.ª ed., 2003)
VASCONCELOS, Maria Emília Sena de, 1991: «Os Barbosa e Silva, de Viana, e Camilo». Cadernos Vianenses, Tomo XV. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 111-127. Disponível também AQUI.
----------- 1999: Velhos vultos de Viana». Cadernos Vianenses, Tomo XXV. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 45-54. Disponível também AQUI.


[Continuará]