quinta-feira, 29 de maio de 2014

009. Camilo & os irmãos Barbosa e Silva [09]

          em O Vinho do Porto (1884) [I]



Há 130 anos, a 20 de abril de 1884, Camilo concluía O Vinho do Porto – Processo de uma bestialidade ingleza, sendo editado, no mesmo ano, pela Livraria Civilização do Porto. A narrativa é dedicada a Thomaz Ribeiro (então ministro do reino, também destinatário invocado e convocado, ao longo do texto-discurso) com as seguintes palavras:

Como sei que o teu amor ás perfidas trêta e manhas de Inglaterra não é dos mais acrisolados, venho offerecer ao teu sorriso um SAPECIMEN de bestialidade ingleza. [Branco, 1884: 5]

   Não interessará, neste blogue, analisar miudamente o tal «processo da bestialidade», por não dizer respeito ao objeto e objetivo dos posts que neste sítio venho metendo. Objeto e objetivo que são, recordo, apresentar referências explícitas de Camilo a Viana e/ou aos seus amigos vianeses, com especial destaque para os irmãos Barbosa e Silva e, muito particularmente, ao benjamim da família – José.

O leitor começa e saborear a deliciosa prosa d’O Vinho do Porto e, a dada altura, passados cerca de 2/3 do livro, depara (e deve mesmo parar) com a seguinte passagem, onde o Escritor recorda a «instituição carpideira» de que fez parte, presidida por José Barbosa e Silva.

[Id., 1884: 71-73. (Adaptado)]

            O fragmento transcrito é suficientemente claro, a respeito da referência (respeitosa, como sempre) que Camilo faz ao seu grande amigo de Viana. E a propósito, fala das imitações e falta de originalidade daqueles que seguem, acriticamente, o estilo dos grandes escritores.
O acontecimento central de O Vinho do Porto é o naufrágio, nas águas do Douro, ocorrido em 12-V-1861, em que o barão de Forrester (J. James) «desapareceu d’este alfobre [Porto] de charlatães forasteiros, de um modo tragico, ha vinte e trez annos» [id.: 11-12]. Mas a sua «casa luxuosa na Ramada-Alta era o confluente dos próceres portuenses e da provincia vinícola», tais como «titulares, desembargadores-conselheiros, ministros de estado honorários, os maiores proprietários do Douro, e poetas arcádicos da pacotilha, que faziam dithyrambos ao jantar». [Id.: 15] A todos Camilo descreve com a graça, ironia e, por vezes, o sarcasmo que lhe são conhecidos:

Ora estes commensaes de Forrester, quasi todos vinhateiros, ignoravam, excepto dous ou trez, a lingua ingleza e desconheciam portanto o descrédito com que o amphitriao mareára os seus vinhos no mercado de Londres; mas o governo, que possuia idiomas como um Calepino, pegou de uma coroa de barão e pôl-a na cabeça de J. James - barão de Forrester. E, se não morre tão cedo, e faz nova edição das calumnias contra a mais rica e ameaçada industria portugueza - uma segunda edição peorada e mais incorrecta – o governo luso fasia-o visconde, não é verdade? [Id.: 25]
No naufrágio, pereceu também a referida Gertrudes. O Escritor recorda-a e confessa ter pensado dedicar-lhe «um artigo necrológico», como sinal de gratidão, à altura dos inúmeros favores que ela, graciosamente, dedicadamente, prolongadamente lhe prodigalizara.
Quem foi esta mulher, a quem o Escritor preferia chamar Gertrúria, e que favores e tais lhe concedeu ela, fica para o próximo post, a fim de não sobrecarregar este, ainda mais.
Quanto ao processo de uma bestialidade inglesa acerca do vinho do Porto, não há como ler O Vinho do Porto. Além de edições mais antigas, a mais recente data de 2000, prefaciada pelo escritor e camilianista José Viale Moutinho.
Mas sempre lhes direi que o dito processo consistia, como se deixa entrever no fragmento acima transcrito, em certos ingleses depreciarem o vinho do Douro, apesar de serem seus negociantes. E a bestialidade, consciente ou inconscientemente inscrita no mesmo processo, consistiu em autores ingleses, além de atacarem o vinho, não saberem distinguir a jeropiga portuguesa, da escrita com <j> da escrita com <g>. Naquele tempo, claro! E Camilo aproveita a questão gráfica e linguística para nos oferecer mais um belíssimo trecho das suas reminiscências:

Para corroborar o Forrester e açular as iras contra o vinho do Porto, o outro pamphletista, Whittaker, invoca a opinião unanime dos medicos inglezes que reputam o vinho procedente de Portugal uma peste para o estomago e para o figado; por quanto o summo da uva é quasi uma idea abstracta na moxinifada de aguardente, baga, melaço e jeropiga. Elle não escreve sem desculpavel horror a palavra JEROPIGA.

            E continuando, dirigindo-se ao seu grande amigo Tomás Ribeiro, o Escritor explica «o segredo d[est]a bestialidade inglesa», assim:

James Forrester, tão respeitador dos vinhos portuguezes como da nossa orthographia, tinha escripto “Jeropiga” com J. Parece que d'esta bagatella não devia surdir grande equivoco na percepção do pensamento; porém, succede que a palavra com G ou com J dá duas significações de coisas e serventias, e entradas e sahidas muito diversas. Whittaker, para saber radicalmente o que era Jeropiga, abriu o Diccionario portuguez de Constâncio, e encontrou: JEROPIGA, Ajuda, clyster, bebida medicinal.
Tremulo de indignação e livido de nôjo, brada o inglez: “Esta ultima expressão (bebida medicinal) é o mesmo que mézinha; quanto ás duas primeiras (ajuda, clyster) são a mesma coisa, tem o mesmo sentido, e dispenso-me de as traduzir. Que bellas coisas a gente bebe!”
Ó Thomaz Ribeiro, quem não sentiria vontade de mandar o inglez beber outras? [Id., 1884: 27-28]

Então, até à Gertrúria ou Gertrudes. Ou será Eufrázia?!...


NB – Respeitei a grafia das edição consultada, em todas as citações principais.


Leituras:
BRANCO, Camilo Castelo, 1884: O Vinho do Porto – Processo de uma bestialidade ingleza. Porto: Livraria Civilização.