sexta-feira, 9 de junho de 2017

CAMILO &M VIANA
[1857: “velha” como “nova” (18)]


A 3.ª referência epistolar de Camilo ao Aurora do Lima, transcrita no “post” anterior, para cuja leitura remeto, pede algumas observações.
Começa o remetente, no excerto transcrito, por revelar ao destinatário que havia principiado a história. Em seguida, depois de breves comentários sobre a forma e conteúdo da mesma, pede-lhe um parecer, por um lado, e cuidado na sua transcrição, por outro.
A história é o relato da excursão que Camilo, juntamente com mais três amigos - Evaristo Basto e os irmãos Luís e José Barbosa e Silva - haviam feito, há poucos dias (finais de junho de 1856) ao Bom Jesus de Braga. A partida deu-se do portuense Largo da Trindade, eram cinco horas da tarde do dia 26, e o regresso a 28, era meio-dia. Camilo e Evaristo à Cidade Invicta. Os irmãos Barbosa e Silva à Princesa do Lima. [Cf. BRANCO, 18582: 87 e 173; Também BARBOSA [1919]: 122-123 e CABRAL, 1984 (I): 100].
Recorde-se que a 3.ª referência é de carta datada de 02/07/1856. Camilo escrevia depressa e bem, como ninguém, fruto dos seus dotes para as letras, mas aliados a um persistente trabalho de auto-formação e prática. Um profissional, puro e duro – dir-se-ia. Veja-se que ele regressa do passeio a Braga, no dia 28, «muito alquebrado», diz em carta a JBS, no dia seguinte. Nessa carta conta que, por isso, dormiu oito horas seguidas, desde que chegou a casa. Mas acrescenta:

Logo q[ue] o espirito se robusteça, vou começar o meu trabalho dos folhetins. P[ar]a isto quere-se facundia de gracejos, e sal ás pilhas. Estou insosso e salobro como aquelle espirito que fizemos, em mangas de camisa, na encosta do S[enho]r do Monte.
{BARBOSA, [1919]: 123. Respeitada grafia da edição consultada, com inclusão, porém, dos grafemas omissos. Também em CABRAL, 1984 (I): 100]
Nota - O «espírito» a que o Escritor se refere é, a meu ler, aquele episódio que os quatro amigos terão vivido, quando, aninhados na carroça e transpirando copiosamente, subiam para o Senhor do Monte. Os cavalos que puxavam a carroça, a dada altura, estacaram a marcha, derretendo-se em suores. Pareciam estar em paroxismo de morte. Foram salvos - parelha e seu dono, mais os quatro peregrinos – pelo encontro inesperado dos cavalos com um par de garranos, montados por dois lorpas. Estes, os garranos, e aqueles, os cavalosdistribuíram couces em todas as direções. Os cavalos encostaram os garranos à parede e a carroça, vazia de passageiros, lá chegou ao cimo da suavíssima estrada, que mais não era que uma calçada precipitosa. [Cf. BRANCO, 18582: 154-156]

Todavia, logo no dia 01/07, saía, no jornal portuense A Verdade (n.º 235), o primeiro folhetim da história, com o irónico e humorístico título «Peregrinação sobre a Face do Globo». Quando, por isso, Camilo diz, na 3.ª referência, que JBS verá que principiou a história, está ele a comunicar ao amigo que tinha sido publicado o 1.º folhetim, de que lhe enviaria, juntamente, a respetiva tira do periódico. Tira de que o Aurora deveria fazer cuidada transcrição, ao dar a lume o folhetim.

A «Peregrinação» começou a ser publicada no Aurora do Lima (na verdade, transcrita d’A Verdade), a 05/07/56 (n.º 81). Os folhetins continuaram no jornal portuense, mas só até 18/07 (n.º 250), sendo, de seguida, transcritos no jornal vianês. Camilo, entretanto, deixa de colaborar no Verdade. Tinham-lhe censurado o romance Lágrimas Abençoadas que, em folhetins, estava publicando neste jornal. A «Peregrinação» passa, por isso, em setembro, para as páginas d’O Clamor Público (jornal portuense de que Camilo era um dos redatores). Desta feita, contudo, até ao último folhetim. O Aurora, por sua vez, continua a publicação dos folhetins em falta, transcrevendo-os d’O Clamor. O último capítulo sai em 14/10 (n.º 124).

Com o título «Do Porto a Braga», o Escritor  incluiu, depois, a «Peregrinação», no volume Duas Horas de Leitura: em 1857, com «Dous Santos não Beatificados em Roma»; em 18582, mais as narrativas «Impressão Indelével (1848)» e «Sete de Junho de 1849». Estas duas últimas histórias vieram a público, pela primeira vez, no Aurora do Lima, em finais de abril e meados de junho de 57, respetivamente.
O Escritor, em três destas quatro narrativas (exceção: «Dous santos»), faz frequentes referências elogiosas ao seu dileto amigo JBS. Ao Luís, irmão deste, apenas em «Peregrinação» / «Do Porto a Braga». Aqui, traça o «vulto moral» de cada um deles. [(Re)ver, para Luís BS, aqui e para JBS, aqui]
Camilo dá-nos também o retrato de Evaristo Basto (1821-1865). Natural do Porto, formou-se em direito pela Universidade de Coimbra. Exerceu a advocacia e ocupou vários cargos, sendo, ao mesmo tempo, um homem social e culturalmente interveniente. É, porém, como publicista (jornalista) que mais se faz notar na sociedade portuense, não tanto - observa Camilo a seu respeito – pelo que tenha dito de si, mas pelo que há dito dos outros. Foi um dos primeiros e mais fiéis amigos do Escritor. Camilo, ao traçar o seu «vulto moral», termina com estas palavras:

Para as tempestades do moço, e do moço poeta, não ha senão um porto, e são muitos os naufragios… O porto achou-o E. B., que o merecia: é a paz domestica, a sanctidade das affeições de esposo e pai, tudo que ha de melhor abaixo do céo.
[BRANCO, 18582: 96. Respeitada grafia da edição consultada.]

Convém, entretanto, não esquecer que, neste “post”, estou a tecer algumas considerações sobre as relações de Camilo com o Aurora do Lima, lendo e comentando cartas que o Escritor dirigiu a JBS. Voltando, por isso, à 3.ª referência, resta relevar como o literato jornalista continua interessadíssimo na colaboração e redação do jornal. Neste excerto, diz-se capaz e disponível para escrever sobre todos os assuntos, desde os artigos principais, até mesmo especialidades, desde que o amigo lhe fornecesse os apontamentos necessários. Isto, para ir fazendo alicerces e dominar as matérias («materializar-me»), enquanto não vem viver para Viana. Recorde-se e repare-se:

A respeito da Aurora, lembra-me uma coisa: eu podia mesmo de cá redigir os artigos principais, particularmente os que não tocam com as especialidades do distrito. Escrever indústria em general – Associação – interesses materiais – e até especialidades inspiradas por apontamentos teus. Iríamos assim fazendo já alicerces, e eu habituando-me ao género para o qual me é necessário materializar-me um pouco. [Em carta datada de 02/07/1856]
{CABRAL, 1984 (I): 102. Respeitada grafia da edição consultada. Não transcrita em BARBOSA, [1919]}

É de crer que, durante os três dias da «Peregrinação» a Braga, os Barbosa e Silva tivessem aproveitado a ocasião para debater com o amigo Escritor (se não o tinham feito já antes) o futuro do Aurora, incluindo a possibilidade de ele vir a assumir a redação do ainda novíssimo jornal vianês.
Ver-se-á como as coisas evoluíram, nos “posts” seguintes.

Então, até ao próximo!
E continue a (re)ler Camilo.

Referências e bibliografia consultada:
ANSELMO, Artur, 1989: «Camilo e “A Aurora do Lima”» (Série de 7 rodapés, publicados em A Aurora do Lima, nos meses de fevereiro e março). Também em ANSELMO, 1993.
--------------, 1993: «Camilo e “A Aurora do Lima”». Estudos Camilianos – 3. V. N. de Famalicão: Centro de Estudos Camilianos; pp. 115-123.
BARBOSA, Luís Xavier, [1919]: Cem Cartas de Camillo. Lisboa: Portugal-Brasil Limitada, Sociedade Editora.
BRANCO, Camillo Castello, 18582: Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho, Editor..
CABRAL, Alexandre Cabral, 1984: Correspondência de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva – I. (Escolha, prefácio e comentários de). Lisboa: Horizonte.
-------------, 20032: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho.

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