terça-feira, 1 de agosto de 2017

CAMILO &M VIANA
[1857: “velha” como “nova” (36)]


Mais uma carta de Camilo para José Barbosa e Silva (JBS). Ambos os compiladores (Luís Xavier e Barbosa e Alexandre Cabral) a datam de 14 de novembro de 1856. Trata-se, a meu ler, de mais um documento importante sobre as relações do Escritor com o jornal A Aurora do Lima. Revela, ainda, a idiossincrasia e as condições de vida do polígrafo autor, como homem e profissional das letras. Transcrevo-a, por isso, na íntegra. Acompanhá-la-ei, apenas, das notas que considero indispensáveis. Este “post”, todavia, não será leve.
Eis, pois, a referência

19.ª)
MEU CARO BARBOSA

Uma franqueza paga-se com outra.
Tens notado arrefecimento na m[inh]a collaboração para a Aurora do Lima. Não tem sido arrefecim[en]to, é necessidade, e necessidade das mais villans e prosaicas – a dos meios – a subsistencia que depende do trabalho, e nao tem outra fonte, como sabes.
Eu tenho entre mãos um romance principiado na Verdade, ainda em meio, e já vendido. Tenho uma versão dos 5 primeiros l[ivr]os do Tito Livio, incomenda de 7 meses, e apenas principiada. Tenho os folhetins do C[lamor] Público, que me escripturou 3 vezes p[o]r semana, e quase me obriga a escrever diariamente.[1]
E’ necessario renunciar a uma d’estas cousas, por que ha incompatibilid[ad]e de tempo, não posso tanto, e ainda q[ue] podesse não estou resolvido a suicidar-me d’este modo. Antes trôlha.
Renunciando, p[o]r exemplo, á versão latina para escrever com m[ui]to mais prazer na «Aurora do Lima» é vergonha confessal-o, mas eu estou como os operarios que precisam ser pagos em dia. Quando te propuz a venda do romance, estive p[ar]a pedir-te que m’o fizesses logo pagar, para eu dar ao Cruz Cout[inh]o 50$ r[éi]s q[ue] tinha recebido adiantados p[o]r conta do Tito Lívio, e dizer-lhe q[ue] me era impossível escrever a obra. Vê tu como em Portugal está illaqueado um dos escriptores que m[ai]s trabalha. [2]
Vendo que a empresa da Aurora não julgava urgente a m[inh]a paga, vi-me forçado a desviar a attenção para outras cousas, por q[ue] as minhas precisões são d’aquellas que se sentem todos os dias, e não podem espaçar-se. As m[inh]as despesas triplicaram. Alluguei caza, mobilei-a, tenho a pequena n’um collegio, etc., etc. E’ franqueza de m[ai]s, mas tu exigiste-m’a. [3]
Acceito a paga dos 20$ r[éi]s mensaes. Escreverei o m[ai]s e m[ai]s variadamente que possa. (Antes que me esqueça o A. Ferr[eir]a ficou contente com a remessa do jornal – e faz a assignatura).
Se é possivel adiantarem-me o preço do romance p[ar]a eu me desquitar com o Cout[inh]o, é um grande auxílio; se não, esperarei. [4]
Tens entendido bem esta carta? Só a tua amisade me provocaria a revellar-te cousas que vexam a m[inh]a vaidade. Quando me dizem cousas e lousas do meu talento… e me vejo obrigado a escrever cartas destas…
Ad[eu]s. Recados a teus manos e ao S[ebasti]am de S[ou]za. [5]

N. B.

Amanhan receberás originaes. [6]
(Porto, 14 de Novembro de 1856)

  Teu Camillo.

{BARBOSA. [1919]: 25-26. Também em CABRAL, 1984 (I): 131-132.
Respeitada grafia da edição consultada.
Na transcrição, desenvolvi formas abreviadas.}

[1] O romance, ainda em publicação no jornal A Verdade, e já vendido, deve ser, segundo Alexandre Cabral [1984 (I): 132], Lágrimas Abençoadas. Sobre a colaboração e as relações de Camilo com o Verdade e o Clamor, periódicos portuenses, (re)ver “post”, entre outros.
Os cinco primeiros livros do Tito Lívio (59 a.C. – 17 d.C.), em tradução, deveriam ser da obra monumental Ab Urbe Condita Libri (Livros desde a Fundação da Cidade). Geralmente designada por Ab Urbe Condita e traduzida por História de Roma, era constituída por 142 livros, repartidos por décadas ou grupos de dez livros. Dos 142, só  35 restam: 1 a 10 e 21 a 45. [Ver AQUI]

[2] António Rodrigues da Cruz Coutinho (1819-1885): «Foi porventura um dos primeiros editores que assegurou a Camilo um trabalho estável, apesar das suas relações terem sido de curta duração: de 1856 a 1859. Durante esse lapso de tempo publicou: Onde Está a Felicidade? [romance], em 1856; Espinhos e Flores [drama], em 2.ª ed., e O Purgatório e o Paraíso [drama], em 1857; A Vingança, O Que Fazem Mulheres e ainda, em 2.as edições, Anátema [romance], A Filha do Arcediago [romance] e Duas Horas de Leitura [narrativas], esta aumentada, em 1858. [CABRAL, 20032: 264.]

[3] Casa e mobília: (re)ver “post”.
Pequena em colégio: trata-se de Bernardina Amélia [1848-1931], filha natural de Patrícia Emília de Barros [1826-1885] e de Camilo [(re)ver “post”, entre outros]; quanto ao colégio, cito, para, logo depois, advertir para lapsos cometidos pelo seu autor:

«Por carta dirigida a José da Silva Barbosa, de Viana, em finais de Janeiro de 1857 sabemos que Bernardina Amélia estudava no Colégio das Taipas; em outra carta de 1 de Abril do mesmo ano, Camilo diz que ela está em casa de D. Eufrásia. / Finalmente, deu entrada no Convento de S. Bento da Avé Maria, como educanda de madre Isabel Cândida Vaz Mourão, com quem Camilo mantinha idílio amoroso.» [FIGUEIRAS, 2002: 18/19]

Lapsos: (i) o destinatário vianês destas cartas chamava-se José Barbosa e Silva e não José da Silva Barbosa; (ii) «em finais de Janeiro de 1857», Camilo, nas cartas enviadas a JBS, não se refere à pequena nem ao colégio onde ela estudava. Fá-lo, sim, em duas cartas de finais de 1856: uma, datável de 14 de novembro – transcrita acima, neste “post” – e outra, datável de 15 de dezembro – a transcrever em próximo.  Em nenhuma delas, porém, menciona o nome do colégio, como se leu e lerá; (iii) a freira Isabel Cândida não seria madre, mas simplesmente soror/irmã; (iv) os biógrafos camilianos indicam que o colégio, onde Camilo tinha a filha, era o convento da Avé Maria, sob a educação e proteção de Isabel Cândida. [(Re)ver, entre outros, “post” 08.]

[4] Camilo aceita a contraproposta que, em nome do Aurora do Lima, JBS lhe terá enviado, sobre a edição, em livro, do romance, isto é, de Cenas da Foz e, ao mesmo tempo, o pagamento da mensalidade pelas colaborações (incluindo os folhetins destas Cenas). [(Re)ver “post”]
A. Ferreira é «seguramente […] Augusto Ferreira», informa Alexandre Cabral, acrescentando que este novo assinante do jornal vianês fora «referenciado por Camilo, sob o pseudónimo de João Júnior, no n.º 149 d’A Aurora do Lima (de 13/XII/1856).» E fornece mais informações sobre este portuense, amigo dos dois amigos. [CABRAL, 1984 (I): 132]

[5] Sobre Sebastião de Sousa, (re)ver “post”.
A propósito dos recados aos manos, cabe referir que, em carta datada de 9 de novembro, Camilo enviara condolências a JBS pela morte, ocorrida no dia 3, de José Duarte Xavier Torres e Silva. Este era cunhado dos Barbosa e Silva, marido de Maria Cândida Barbosa e Silva [1822-1908]. Luís Xavier Barbosa [1849-1925], o compilador das Cem Cartas de Camilo, era seu filho, que não transcreveu a carta camiliana de condolências pela morte do progenitor. [Cf. CABRAL, 1984 (I): 129-130 e VASCONCELOS, 1999]

[6] Que originais? Certamente folhetins da continuação de Cenas da Foz, no Aurora do Lima. Mas também outros textos: artigos, correspondência (cartas) e poemas. Tudo isto até 15 de dezembro de 56, data em que, segundo a transcrição de Alexandre Cabral, Camilo volta a corresponder-se com JBS. [Cf. CABRAL, [1984 (I): 134]
Às colaborações de Camilo, neste periódico vianês, hei de dedicar, oportunamente, artigo(s) e/ou “post(s)”.

Entretanto, até ao próximo! Com a transcrição integral de mais uma carta de Camilo para José Barbosa e Silva.
E continue a (re)ler Camilo!

Referências:
BARBOSA, Luís Xavier, [1919]: Cem Cartas de Camillo. Lisboa: Portugal-Brasil Limitada, Sociedade Editora.
CABRAL, Alexandre Cabral, 1984: Correspondência de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva – I. (Escolha, prefácio e comentários de). Lisboa: Horizonte.
------------, 20032: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho.
FIGUEIRAS, Paulo de Passos, 2002: Cartas Inéditas de Camilo Castelo Branco à Filha Bernardina Amélia, ao Genro e à Neta. Porto: Universidade Fernando Pessoa.
VASCONCELOS, Maria Emília Sena de, 1999: «Velhos vultos de Viana». Cadernos Vianenses, Tomo XXV. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 45-54.

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