CAMILO &M VIANA
[1857: “velha” como “nova” (36)]
Mais uma carta de Camilo para José
Barbosa e Silva (JBS). Ambos os compiladores (Luís Xavier e Barbosa e Alexandre
Cabral) a datam de 14 de novembro de 1856. Trata-se, a meu ler, de mais um
documento importante sobre as relações do Escritor com o jornal A Aurora do Lima. Revela, ainda, a
idiossincrasia e as condições de vida do polígrafo autor, como homem e profissional
das letras. Transcrevo-a, por isso, na íntegra. Acompanhá-la-ei, apenas, das
notas que considero indispensáveis. Este “post”, todavia, não será leve.
Eis, pois, a referência
19.ª)
MEU CARO BARBOSA
Uma
franqueza paga-se com outra.
Tens
notado arrefecimento na m[inh]a collaboração para a Aurora do Lima. Não tem
sido arrefecim[en]to, é necessidade, e necessidade das mais villans e prosaicas
– a dos meios – a subsistencia que depende do trabalho, e nao tem outra fonte,
como sabes.
Eu
tenho entre mãos um romance principiado na Verdade,
ainda em meio, e já vendido. Tenho uma versão dos 5 primeiros l[ivr]os do Tito
Livio, incomenda de 7 meses, e apenas principiada. Tenho os folhetins do C[lamor] Público, que me escripturou 3
vezes p[o]r semana, e quase me obriga a escrever diariamente.[1]
E’
necessario renunciar a uma d’estas cousas, por que ha incompatibilid[ad]e de
tempo, não posso tanto, e ainda q[ue] podesse não estou resolvido a suicidar-me
d’este modo. Antes trôlha.
Renunciando,
p[o]r exemplo, á versão latina para escrever com m[ui]to mais prazer na «Aurora
do Lima» é vergonha confessal-o, mas eu estou como os operarios que precisam ser
pagos em dia. Quando te propuz a venda do romance, estive p[ar]a pedir-te que m’o
fizesses logo pagar, para eu dar ao Cruz Cout[inh]o 50$ r[éi]s q[ue] tinha
recebido adiantados p[o]r conta do Tito Lívio, e dizer-lhe q[ue] me era
impossível escrever a obra. Vê tu como em Portugal está illaqueado um dos escriptores
que m[ai]s trabalha. [2]
Vendo
que a empresa da Aurora não julgava
urgente a m[inh]a paga, vi-me forçado a desviar a attenção para outras cousas,
por q[ue] as minhas precisões são d’aquellas que se sentem todos os dias, e não
podem espaçar-se. As m[inh]as despesas triplicaram. Alluguei caza, mobilei-a,
tenho a pequena n’um collegio, etc., etc. E’ franqueza de m[ai]s, mas tu
exigiste-m’a. [3]
Acceito
a paga dos 20$ r[éi]s mensaes. Escreverei o m[ai]s e m[ai]s variadamente que
possa. (Antes que me esqueça o A. Ferr[eir]a ficou contente com a remessa do
jornal – e faz a assignatura).
Se
é possivel adiantarem-me o preço do romance p[ar]a eu me desquitar com o Cout[inh]o,
é um grande auxílio; se não, esperarei. [4]
Tens
entendido bem esta carta? Só a tua amisade me provocaria a revellar-te cousas
que vexam a m[inh]a vaidade. Quando me dizem cousas e lousas do meu talento… e me vejo obrigado a
escrever cartas destas…
Ad[eu]s.
Recados a teus manos e ao S[ebasti]am de S[ou]za. [5]
N.
B.
Amanhan
receberás originaes. [6]
(Porto, 14 de Novembro de 1856)
Teu
Camillo.
{BARBOSA. [1919]: 25-26. Também
em CABRAL, 1984 (I): 131-132.
Respeitada grafia da edição consultada.
Na transcrição, desenvolvi formas abreviadas.}
[1] O romance, ainda em publicação no
jornal A Verdade, e já vendido, deve ser, segundo Alexandre
Cabral [1984 (I): 132], Lágrimas
Abençoadas. Sobre a colaboração e as relações de Camilo com o Verdade e o Clamor, periódicos portuenses, (re)ver “post”, entre outros.
Os cinco primeiros livros
do Tito Lívio (59 a.C. – 17 d.C.), em tradução, deveriam ser da obra
monumental Ab Urbe Condita Libri (Livros desde a Fundação da
Cidade). Geralmente designada por Ab
Urbe Condita e traduzida por História
de Roma, era constituída por 142 livros, repartidos por décadas ou grupos
de dez livros. Dos 142, só 35 restam: 1
a 10 e 21 a 45. [Ver AQUI]
[2] António
Rodrigues da Cruz Coutinho
(1819-1885): «Foi porventura um dos primeiros editores que assegurou a Camilo
um trabalho estável, apesar das suas relações terem sido de curta duração: de
1856 a 1859. Durante esse lapso de tempo publicou: Onde Está a Felicidade? [romance], em 1856; Espinhos e Flores [drama], em 2.ª ed., e O Purgatório e o Paraíso [drama], em 1857; A Vingança, O Que Fazem
Mulheres e ainda, em 2.as edições, Anátema [romance], A Filha do
Arcediago [romance] e Duas Horas de
Leitura [narrativas], esta aumentada, em 1858. [CABRAL, 20032:
264.]
Pequena em colégio: trata-se de Bernardina
Amélia [1848-1931], filha natural de Patrícia Emília de Barros [1826-1885] e de
Camilo [(re)ver
“post”, entre outros]; quanto ao colégio,
cito, para, logo depois, advertir para lapsos
cometidos pelo seu autor:
«Por carta dirigida a José da Silva Barbosa, de Viana, em finais de Janeiro
de 1857 sabemos que Bernardina Amélia estudava no Colégio das Taipas; em outra
carta de 1 de Abril do mesmo ano, Camilo diz que ela está em casa de D.
Eufrásia. / Finalmente, deu entrada no Convento de S. Bento da Avé Maria, como
educanda de madre Isabel Cândida Vaz Mourão, com quem Camilo mantinha idílio
amoroso.» [FIGUEIRAS, 2002: 18/19]
Lapsos: (i) o destinatário vianês destas cartas chamava-se José
Barbosa e Silva e não José da Silva Barbosa; (ii) «em finais de Janeiro de
1857», Camilo, nas cartas enviadas a JBS, não se refere à pequena nem ao colégio
onde ela estudava. Fá-lo, sim, em
duas cartas de finais de 1856: uma,
datável de 14 de novembro – transcrita acima, neste “post” – e outra, datável
de 15 de dezembro – a transcrever em próximo. Em nenhuma delas, porém, menciona o nome do colégio, como se leu e lerá; (iii) a
freira Isabel Cândida não seria madre,
mas simplesmente soror/irmã; (iv) os
biógrafos camilianos indicam que o colégio,
onde Camilo tinha a filha, era o
convento da Avé Maria, sob a educação e proteção de Isabel Cândida. [(Re)ver,
entre outros, “post” 08.]
[4] Camilo
aceita a contraproposta que, em nome do Aurora
do Lima, JBS lhe terá enviado, sobre a edição, em livro, do romance, isto é, de Cenas da Foz e, ao mesmo tempo, o pagamento da mensalidade pelas
colaborações (incluindo os folhetins destas Cenas).
[(Re)ver
“post”]
A. Ferreira é «seguramente […] Augusto Ferreira», informa Alexandre
Cabral, acrescentando que este novo assinante do jornal vianês fora
«referenciado por Camilo, sob o pseudónimo de João Júnior, no n.º 149 d’A Aurora do Lima (de 13/XII/1856).» E
fornece mais informações sobre este portuense, amigo dos dois amigos. [CABRAL,
1984 (I): 132]
A
propósito dos recados aos manos, cabe referir que, em carta datada
de 9 de novembro, Camilo enviara condolências
a JBS pela morte, ocorrida no dia 3, de José Duarte Xavier Torres e Silva. Este
era cunhado dos Barbosa e Silva, marido de Maria Cândida Barbosa e Silva
[1822-1908]. Luís Xavier Barbosa [1849-1925], o compilador das Cem Cartas de Camilo, era seu filho, que
não transcreveu a carta camiliana de condolências
pela morte do progenitor. [Cf.
CABRAL, 1984 (I): 129-130 e VASCONCELOS, 1999]
[6] Que originais? Certamente folhetins da
continuação de Cenas da Foz, no Aurora do Lima. Mas também outros textos:
artigos, correspondência (cartas) e poemas. Tudo isto até 15 de dezembro de 56,
data em que, segundo a transcrição de Alexandre Cabral, Camilo volta a corresponder-se
com JBS. [Cf. CABRAL, [1984 (I): 134]
Às
colaborações de Camilo, neste periódico vianês, hei de dedicar, oportunamente, artigo(s)
e/ou “post(s)”.
Entretanto,
até ao próximo! Com a transcrição integral de mais uma carta de Camilo para José Barbosa e Silva.
E continue a (re)ler Camilo!
Referências:
BARBOSA, Luís Xavier, [1919]: Cem
Cartas de Camillo. Lisboa:
Portugal-Brasil Limitada, Sociedade Editora.
CABRAL, Alexandre Cabral,
1984: Correspondência de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e
Silva – I. (Escolha, prefácio e comentários de). Lisboa: Horizonte.
------------, 20032: Dicionário de Camilo Castelo Branco.
Lisboa: Caminho.
FIGUEIRAS, Paulo de Passos, 2002: Cartas Inéditas de Camilo Castelo Branco à Filha Bernardina Amélia, ao Genro e à Neta. Porto: Universidade Fernando Pessoa.
VASCONCELOS, Maria Emília Sena de,
1999: «Velhos vultos de Viana». Cadernos
Vianenses, Tomo XXV. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do
Castelo; pp. 45-54.
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