sábado, 8 de novembro de 2014

014. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [11]

          em Duas Horas de Leitura (1857) [I]



Um dos textos onde Camilo mais longamente se refere aos irmãos Luís (1825-1892) e José Barbosa e Silva (1828-1865), naturais de Viana do Castelo, é em «Do Porto a Braga», publicado, juntamente com outras pequenas narrativas ou crónicas, em Duas Horas de Leitura. A primeira edição desta coletânea saiu em 1857 e nela o Escritor incluíra apenas, além da narrativa referente à viagem, também «Dous Santos não Beatificados em Roma». Na segunda edição, saída no ano seguinte, acrescenta-lhe mais duas: «Impressão Indelével (1842)» e «Sete de Junho de 1849».
As quatro narrativas foram publicadas, primeiramente, em folhetins de jornais, nomeadamente em A Aurora do Lima, jornal vianês cujo primeiro número veio a público em 15 de dezembro de 1855. Os «Dous Santos» apareceu apenas no jornal portuense O Clamor Público (em finais de outubro de 1856), mas cujo título completo era então «Dous Santos dos Que Se não Fazem em Roma». Por sua vez, «Do Porto a Braga», mas com o irónico título inicial de «Peregrinação sobre a Face do Globo», foi sendo publicado, durante o ano de 1856, no jornal portuense A Verdade, primeiro, e republicado, depois, em O Clamor Público (setembro) e n’A Aurora (outubro). Neste jornal foram publicadas, pela primeira vez, «Impressão Indelével (1842)», em finais de abril de 1857 e «Sete de Junho de 1849», em meados de junho do mesmo ano.
À exceção de «Dois Santos», Camilo refere-se aos dois irmãos Barbosa e Silva nas outras três narrativas, mas só o José aparece sempre nas três; o Luís é referido apenas em «Peregrinação sobre a Face do Globo» / «Do Porto a Braga». Os dois irmãos são referidos apenas pelas iniciais dos respetivos nome e primeiro apelido. Além destes, fazia parte também da comitiva E. B., ou seja, Evaristo Basto (1821-1865), natural do Porto, onde desenvolveu atividade política e jornalística, apesar de formado em direito. A ele também o Escritor se refere, longa e amigavelmente.

Creio não ser necessário resumir esta breve narrativa. Por duas razões. Primeira: não quero correr o risco de afastar o leitor de apreciar com prazer e humor Duas Horas de Leitura. Segunda: as passagens a transcrever e sua co(n)textualização, ainda que breve, acabará por fornecer dados que contribuirão para que o leitor faça uma ideia, ainda que incompleta, do que foi o passeio que os quatro viajeiros fizeram do Porto a Braga, cujo destina final era o Bom Jesus. Mas com uma paragem em Famalicão, para pernoita e saberem se tinham ou não a bicha solitária, através da consulta de um «doutor», especialista em ténias. 
Camilo só começa a descrever o «vulto moral» dos seus companheiros e as peripécias em que, isoladamente ou em conjunto, intervêm, a partir do cap. II. Mas logo no cap. I, fornece-nos alguns dados sobre cada um deles, bem como os preparativos e o meio de transporte utilizado. Ficar-me-ei, hoje, pelas transcrições do primeiro capítulo a esse respeito.


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Eram 5 horas da tarde de 26 de Junho de 1856, quando nos reunimos quatro homens, que, nascidos na Gran-Bretanha, teriamos morrido onde morreu Franklin: tal é a aspiração que sentimos para o desconhecido, e a ancia que nos rala de não sermos contemporaneos do infante D. Henrique. […]
Reunidos, pois, no largo da Trindade, L[uís] B[arbosa]. — J[osé] B[arbosa] — E[varisto] B[asto] — e este vosso attento venerador e creado, estavamos alli esperando que o auriga ajaezasse as horsas, e as atrelasse á ambulancia, innominada ainda na grande variedade de locomotivas, desde o carroção-Oliveira(*) até ao gig. Na physionomia de todos quatro via-se a pallidez do receio, aquelle mêdo invencivel aos mais corajosos, se commettem uma empreza de muitos perigos, posto que de muita gloria, quer vençam, quer pereçam n'ella. […]
Estavamos, pois, em muda conversação com os nossos espiritos, quando o carrilhão da Trindade badalejou a aria do “Rigoletto”. A indignação espertou-nos do extasis doloroso. Esporeou-nos o animo abatido aquelle estranho insulto ás artes. Diz Werner que depois da palavra divina, o mais delicioso que póde ouvir-se é a musica. Seria; mas o diabo empoleirou-se, faz hoje cinco annos, nos corucheus da Trindade, e a musica tornou-se o seu palavriado satanico.
Desejamo-nos então longe do Porto. Calaram-se receios, e saudades. Cederam á zanga os sentimentos grandes. Partimos.
Principiaram os trabalhos. Nós eramos quatro, o carro tinha quatro logares, porém, faltava um para o chapeu de E. B. […] E. B., receiando eclypsarse nas cavidades insondaveis do seu chapeu, sendo internado n'elle por um dos solavancos do carro, appellou para a generosidade de J. B., e alcançou um bonet portatil, que o pôz a salvo do jogar de cabeça contra a abobada da locomotiva […] Deslocado o chapeu, era necessario acondicional-o no porta-malas, ou recebêl-o entre os braços como se faz a uma gorda criancinha de seis annos vestida de marthas. Além não podia ser, porque a nossa bagagem era volumosa como convinha a homens que iam com esperanças de passar lá fóra, longo tempo, endireitando as fracturas das pernas antes de repousar no seio das familias. Foi preciso, pois, tomal-o nos braços, ou apertal-o entre os joelhos, porque, se o pendurávamos, a avalanche deslocava-se, e, cahindo, semeava entre nós a discordia e a inquietação.
Que nos perdôem os espíritos fortes: o nosso trem era um milagre. Como um dos cavallos, se o eram, variava o chôto favorito, tremelhicando sobre o jarrete da perna direita em redopio convulsivo, isso é que eu nunca entendi, posto que me tenho esmerado em estudar a pathologia veterinaria para certos effeitos. […] 0 da direita era de uma subtileza nervosa tal que, ao estalar do chicote, respondia, abaixando a orelha. O da esquerda, sensivel ás suas reminiscencias de 1810, alongava as cordoveias do pescoço, a cada vergoada stridente; e algumas vezes, olhando para cima, franzia e enviezava o beiço superior; e, com esta careta, parecia rir de nós, ou provocar, zombando, como Hamlet, o seu triste fado.
O carro era cousa assim a modo de lagar, com bambinellas pensis de oleado, e almofadas de marroquim, estofadas de caroços duros, que contundiam acerbamente as carnes. Os recostos eram de ferro estreme inflexiveis ao choque das costellas. As portinholas, o pavimento, e o resto da madeira, bem aproveitada, construia um navio de 300 toneladas. […]
Ahi está o theatro da menor parte de nossas angustias. Pôtro movel de torturas corporaes, ainda assim, em confronto das que nos esperavam, póde dizer-se que uma sultana não se senta em mais flacidos coxins. O que fizemos, logo que entramos, e sentimos o risco da nossa situação, foi aconchegarmo-nos como os meninos no lago dos leões, de que reza a Biblia.
O Senhor Jesus do Monte, em cuja romagem vamos, nos tenha debaixo de sua mão, e ávante!

(*) Manuel José d'Oliveira é um nome respeitavel do Porto, proprietario de innumeraveis carroções, cuja alma elle é, e irá com elles, de methamorphose em methamorphose, até ao derradeiro bocejo da humanidade.
Branco, 18582: 87-92


NB – Na transcrição foi respeitada a grafia da edição consultada.

Leituras:
Branco, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
Cabral, A., 1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho. (2.ª ed., 2003)

[Continuará]

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