segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

019. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [16]

         em Duas Horas de Leitura (1857) [VI]


[Continuação do post anterior]

«A  HISTORIA da tenia não acabou ainda, leitor pacientissimo! Não lhe esqueça que L[uís] B[arbosa], posto que não seja poeta visionario, tambem imaginou uma [ténia] como os poetas imaginam virgens.» [Branco, 18582: 117] 

Assim retoma Camilo, logo no início do cap. V da crónica «Do Porto a Braga» (inicialmente intitulada, recorde-se, «Peregrinação sobre a Face do Globo»), incluída no volume Duas de Leitura (rever AQUI), a consulta que três dos quatro amigos fizeram, em Famalicão, ao «doutor em medicina verminosa». Do resultado que obtiveram José Barbosa e Silva e Camilo já se relatou nos posts anteriores [rever AQUI e AQUI]. Chegou, como já se previu, a vez de Luís Barbosa e Silva, que o Escritor, continuando, narra assim:

«Poucos rostos tereis visto mais sadios, mais medrados, e menos expressivos da existencia de um parasita que se approprie o chymo d'uma digestão empeçada. L. B. é atascado de boas carnes, goza as apparencias d'uma enfadonha saude, e, a não ter guapas e espessas barbas, recordaria a nediez e o chorume d'um frade Bernardo, de gorda memoria. D'onde lhe veio a suspeita da solitaria, isso é que eu não sei, nem o doutor em medicina verminosa soube tambem.
Eu de mim, suspeitando-a, tinha desculpa, porque me vejo deáphano como um sylpho, leveiro como um dos gnomos mensageiros de Oberon, e resequido como folha do outomno.
Nada mais razoavel, nas minhas circumstancias, que imaginar-me preza de todos os vermes de Raspail. E indispensavel a existencia de um bicho burlista que me empalma o chylo convertendo-o em substancia sua, com grave detrimento do meu tecido adyposo que se vai encorreando como a polpa de uma solha escallada. A não ser isto, por mais que me digam, deram as bruxas comigo!
J[osé] B[arbosa] tem, não digo cincoenta por cento, mas ao menos uma probabilidade de solitaria, por isso que a tristeza, o aborrecimento, e o desconforto são symptomas moraes, ás vezes, mais persuasivos que os physicos.
Se nem elle nem eu, investigados pelo doutor, tivemos a felicidade de alojar o verme, com que juz L. B. ousa nutrir a ambiciosa suspeita de ser a urna de um annellido com oitenta braças?! Que arrojo é esse de ir sentar-se, depois de mim, em frente do auruspice, que não acha em tres homens reunidos uma polegada de tenia?
Perguntado sobre os seus padecimentos, L. B., naturalmente respondeu que não padecia nada; e o doutor, desesperado de explorar uma victima do seu cosimento, mandou-o erguer, desejando-lhe a continuação da sua boa saude. [Id.: 117-119]



E acabada a consulta, Evaristo Basto, «com a sua delicadeza proverbial convidou o doutor a cear. Aceitou, o mestre, sem fazer-se rogar, porque não quis cercear-nos a gloria de o possuirmos alguns minutos mais.» [Id.: ibid.]

Como decorreu a ceia e como o doutor das lombrigas comia e sobretudo “vovia” e falava doutamente sobre a ténia, terá o amigo leitor deste post / blogue de pegar no livro de Camilo e (re)ler o resto da crónica.  Não está à espera que lhe faça a papinha toda, pois não?...
Mas sempre lhe direi que, após a ceia, os peregrinos de Braga ainda conversaram alguns minutos com o «doutor», sobre a residência e rersistência do verme, cujas afirmações eram seriamente ouvidas entre sorrisos e gargalhadas abafadas. E, a propósito do riso, Camilo reflete:

«N’este tempo em que os acontecimentos comicos inçam a vida de uma sociedade de transição, a hilaridade não cede a pequenos estimulos: o barão tornou-se indigno do riso, o jornalista que apregôa a integridade da sua consciencia para alterar-lhe o preço, passa desapercebido; a escóla de canto da camara municipal portuense não faz rir ninguem; um artigo de fundo, que aconselha ao ministro de instrucção publica o alvitre de a mocidade decorar obrigatoriamente as posturas da camara, para formar por ellas a rectidão do espirito, provoca a lastima, sem desarticular os queixos em estrondosa risada; finalmente, ha uma só coisa que desafia ao leitor um sorriso de piedade: é o conto, á laia d'este, presumido de chiste, pretencioso de sal... sal tartaro, amados leitores. Eu poupo-me, e quero poupar-vos ás grandes gargalhadas, desde que li, não me lembra aonde, que o poeta Philémon morrêra de riso por vêr um onagro comendo figos sobre um escriptorio. Se a gente vai a rir-se de quantos onagros comem figos, rebentam-nos as carotidas !...»

E depois ? – perguntar-me-á já o (im)paciente leitor. Pois foi a seguir lerá:

«A noite ia alta. Cabeceavamos todos e tinhamos de sahir pouco depois. O doutor retirou-se a digerir.
Deram-nos quatro camas n'um quarto. Travou-se lucta de morte, a travesseiro, entre nós, por causa do unico leito de ferro, ingrato ao persovejo. Venceu-o de escalada E[varisto] B[asto].
Deitados, discutimos longo tempo a residencia da solitaria. Eu adormeci praguejando contra a anathomia do doutor: E. B. queria provar que elle era um goraz de casaca. J. B. teimava que o resto da nação, depois da Estremadura e do Alemtejo, era Chaves e Almeida. L. B., com a vella em punho, rebuscava debaixo do travesseiro um persovejo imaginario. A projecção da luz dava-lhe o sombreado mystorioso d'uma avantesma.
Ás trevas seguiu-se o silencio: ao silencio o resomnar profundo.
Uma hora depois fui acordado pelos berros estridentes de E. B.
Amaldiçoei o primeiro homem que mostrou ser possivel levantar-se a gente antes do meio-dia! [Id.: 121-122]

E assim termina o cap. V de «Do Porto a Braga» em Duas horas de Leitura.

Leituras:
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
RODRIGUES, D. F., 2014: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [I], AQUI
-----------, 2014a: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [II], AQUI.
-----------, 2014b: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [III], AQUI.
-----------, 2014d: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [V], AQUI.

NB - O desenho de Camilo é de Júlio Pomar e a fotografia dos irmãos Barbosa e Silva foi colhida AQUI.

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