019. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [16]
em Duas Horas de Leitura (1857) [VI]
«A HISTORIA da tenia não acabou ainda, leitor
pacientissimo! Não lhe esqueça que L[uís] B[arbosa], posto que não seja poeta
visionario, tambem imaginou uma [ténia] como os poetas imaginam virgens.» [Branco, 18582: 117]
Assim
retoma Camilo, logo no início do cap. V da crónica «Do Porto a Braga»
(inicialmente intitulada, recorde-se, «Peregrinação sobre a Face do Globo»),
incluída no volume Duas de Leitura (rever
AQUI), a consulta que três dos quatro
amigos fizeram, em Famalicão, ao «doutor em medicina verminosa». Do resultado
que obtiveram José Barbosa e Silva e Camilo já se relatou nos posts anteriores [rever AQUI
e AQUI]. Chegou, como já se previu, a vez
de Luís Barbosa e Silva, que o Escritor, continuando, narra assim:
«Poucos
rostos tereis visto mais sadios, mais medrados, e menos expressivos da
existencia de um parasita que se approprie o chymo d'uma digestão empeçada. L.
B. é atascado de boas carnes, goza as apparencias d'uma enfadonha saude, e, a
não ter guapas e espessas barbas, recordaria a nediez e o chorume d'um frade
Bernardo, de gorda memoria. D'onde lhe veio a suspeita da solitaria, isso é que
eu não sei, nem o doutor em medicina verminosa soube tambem.
Eu de mim,
suspeitando-a, tinha desculpa, porque me vejo deáphano como um sylpho, leveiro
como um dos gnomos mensageiros de Oberon, e resequido como folha do outomno.
Nada mais
razoavel, nas minhas circumstancias, que imaginar-me preza de todos os vermes
de Raspail. E indispensavel a existencia de um bicho burlista que me empalma o
chylo convertendo-o em substancia sua, com grave detrimento do meu tecido
adyposo que se vai encorreando como a polpa de uma solha escallada. A não ser
isto, por mais que me digam, deram as bruxas comigo!
J[osé] B[arbosa]
tem, não digo cincoenta por cento, mas ao menos uma probabilidade de solitaria,
por isso que a tristeza, o aborrecimento, e o desconforto são symptomas moraes,
ás vezes, mais persuasivos que os physicos.
Se nem elle
nem eu, investigados pelo doutor, tivemos a felicidade de alojar o verme, com
que juz L. B. ousa nutrir a ambiciosa suspeita de ser a urna de um annellido
com oitenta braças?! Que arrojo é esse de ir sentar-se, depois de mim, em
frente do auruspice, que não acha em tres homens reunidos uma polegada de
tenia?
Perguntado
sobre os seus padecimentos, L. B., naturalmente respondeu que não padecia nada;
e o doutor, desesperado de explorar uma victima do seu cosimento, mandou-o
erguer, desejando-lhe a continuação da sua boa saude. [Id.: 117-119]
E
acabada a consulta, Evaristo Basto, «com a sua delicadeza proverbial convidou o
doutor a cear. Aceitou, o mestre, sem fazer-se rogar, porque não quis
cercear-nos a gloria de o possuirmos alguns minutos mais.» [Id.: ibid.]
Como decorreu a ceia e como o
doutor das lombrigas comia e sobretudo “vovia” e falava doutamente sobre a
ténia, terá o amigo leitor deste post
/ blogue de pegar no livro de Camilo e (re)ler o resto da crónica. Não está à espera que lhe faça a papinha toda,
pois não?...
Mas sempre lhe direi que, após
a ceia, os peregrinos de Braga ainda conversaram
alguns minutos com o «doutor», sobre a residência e rersistência do verme, cujas
afirmações eram seriamente ouvidas entre sorrisos e gargalhadas abafadas. E, a
propósito do riso, Camilo reflete:
«N’este
tempo em que os acontecimentos comicos inçam a vida de uma sociedade de
transição, a hilaridade não cede a pequenos estimulos: o barão tornou-se
indigno do riso, o jornalista que apregôa a integridade da sua consciencia para
alterar-lhe o preço, passa desapercebido; a escóla de canto da camara municipal
portuense não faz rir ninguem; um artigo de fundo, que aconselha ao ministro de
instrucção publica o alvitre de a mocidade decorar obrigatoriamente as posturas
da camara, para formar por ellas a rectidão do espirito, provoca a lastima, sem
desarticular os queixos em estrondosa risada; finalmente, ha uma só coisa que
desafia ao leitor um sorriso de piedade: é o conto, á laia d'este, presumido de
chiste, pretencioso de sal... sal tartaro, amados leitores. Eu poupo-me, e
quero poupar-vos ás grandes gargalhadas, desde que li, não me lembra aonde, que
o poeta Philémon morrêra de riso por vêr um onagro comendo figos sobre um
escriptorio. Se a gente vai a rir-se de quantos onagros comem figos,
rebentam-nos as carotidas !...»
E depois
? – perguntar-me-á já o (im)paciente leitor. Pois foi a seguir lerá:
«A noite ia
alta. Cabeceavamos todos e tinhamos de sahir pouco depois. O doutor retirou-se
a digerir.
Deram-nos
quatro camas n'um quarto. Travou-se lucta de morte, a travesseiro, entre nós,
por causa do unico leito de ferro, ingrato ao persovejo. Venceu-o de escalada E[varisto]
B[asto].
Deitados,
discutimos longo tempo a residencia da solitaria. Eu adormeci praguejando
contra a anathomia do doutor: E. B. queria provar que elle era um goraz de
casaca. J. B. teimava que o resto da nação, depois da Estremadura e do
Alemtejo, era Chaves e Almeida. L. B., com a vella em punho, rebuscava debaixo
do travesseiro um persovejo imaginario. A projecção da luz dava-lhe o sombreado
mystorioso d'uma avantesma.
Ás trevas
seguiu-se o silencio: ao silencio o resomnar profundo.
Uma hora
depois fui acordado pelos berros estridentes de E. B.
Amaldiçoei
o primeiro homem que mostrou ser possivel levantar-se a gente antes do
meio-dia! [Id.: 121-122]
E assim termina o cap. V de «Do Porto a Braga» em Duas horas de Leitura.
Leituras:
RODRIGUES, D. F., 2014: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [I], AQUI
-----------, 2014a: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [II], AQUI.
-----------, 2014b: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [III], AQUI.
-----------, 2014d: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [V], AQUI.
NB - O desenho de Camilo é de Júlio Pomar e a fotografia dos irmãos Barbosa e Silva foi colhida AQUI.