022. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [19]
em Duas Horas de Leitura (1857) [IX]
Com se leu no post anterior, os quatro peregrinos
que partiram do Porto com Braga (Bom Jesus do Monte) por destino - Camilo,
Evaristo Basto e os irmãos Luís e José Barbosa e Silva - encontram-se já em
Braga e romancista, a dada altura, foi «comprar
uma folha de papel para escrever para a terra.» Daí que,
ANTES de
entrarmos no correio, paramos, em frente do portão, enlevados n'um cartaz,
lavrado em lettra cursiva de bom tamanho e aprimorada fórma. Lêmol-o, e L[uís]
B[arbosa e Silva], a meu pedido, copiou-o textualmente.
O leitor
erudito, d'oculos e pitada nos dedos engatilhados, queria antes que lhe
déssemos a copia de alguma inscripção romana. Que me importa a mim o que os
romanos escreveram?! Digam-se e escrevam-se cousas que prestem alguma utilidade
á gente. O que passou passou, e nós vamos passando.
Do saber ler
ha um só partido que tirar: aligeirar o tempo agradavelmente. O que por ahi se
chama instrucção, erudição, sabedoria, sciencia, é a mais ôcca das vaidades
humanas.
O homem que
morre, dizendo: “li muito” é um suicida, um nescio que se desherda dos prazeres
da vida, um celibatario de todas as patuscadas humanas, que não serviu, sequer,
para entreter senhoras n'uma sala.
Eu estou
curado da febre intermitente do estudo, desde que a minha boa directora
domestica, economica, gastronomica, e até espiritual, me disse que eu escrevia
muita onzenice que não valia nada
“Que importa saber o que disseram esses homens do tempo do Bofelhas?!” pergunta ella, e tem razão. “Se a gente podesse saber —
accrescenta — o que ha-de vir, então valia a pena estudar; mas saber o que
passou é não ter em que empregar o tempo!”
Bem haja
ella que me revirou o sestro das onzenices
por melhor caminho. [Branco,
18582: 143-144]
A
«boa directora domestica, economica, gastronomica, e até espiritual» era, muito
provavelmente, Isabel Cândida Vaz Mourão. Também, com toda a certeza, a
destinatária da carta que o Escritor tinha ido depositar nos correios. «Freira
do Convento de S. Bento da Ave-Maria, do Porto, […] manteve com Camilo uma
prolongada relação amorosa.» [Cabral, 1989: 427] Esta relação terá começado em
1850 e ter-se-á mantido ao longo de vários anos. «Por volta de 1854, quando o
romancista mandou vir a filha de Vila Real para a sua companhia, Isabel Cândida
conheceu a menina, Bernardina Amélia [filha de Patrícia Emília de Barros, uma
das primeiras amantes de Camilo [cf.
Cabral, 1989: 57-58], passando pouco depois a cuidar da sua educação. Educação de
que continuou a cuidar e a suportar até 1865, ano em que, sob o patrocínio desta «senhora rica e culta»,
Bernardina Amélia casou com o capitalista António Francisco de Carvalho. Isto,
mesmo depois de, sete anos antes, Camilo ter-se desligado de Isabel Cândida,
para se entregar de corpo e alma a Ana Plácido. [Id.: 428]
Recorde-se
que a excursão dos quatro amigos se realizou na primavera/verão de 1856 e,
nessa altura, a ainda amante e protetora de Bernardina Amélia era a freira do
Convento de S. Bento da Ave-Maria. Hei-de voltar a falar, em posts futuros, destas relações, a propósito
de cartas de Camilo para os irmãos Barbosa e Silva, e sobretudo da morada do
escritor, durante cerca de dois meses, em Viana, no ano de 1857.
Voltemos,
então, ao relato/crónica do passeio «Do Porto a Braga».
[Camilo - Desenho de
Júlio Pomar para 1.ª edição d’O Romance de Camilo, de Aquilino Ribeiro, editado em 1956. A imagem encontra-se no Boletim
Cultural da Fundação Calouste Gulbenkian, n.º 4 (VII Série), outubro de 1991, dedicado a Camilo: o Homem e o Artista.]
O
resto do cap. [VIII], Camilo dedica-o a pôr em confronto a «civilização», isto
é, os comportamentos socioculturais entre os habitantes de Braga e Porto. Nem
uns nem outros ficam lá muito bem no retrato que deles faz o Escritor. O leitor
(re)encontrará um capítulo cheio de graça e humor, resultado do recurso à
ironia e por vezes ao sarcasmo. A propósito, permito-me remeter para o post «“A excellencia de carnaval” (1856)», que publiquei
no meu blogue Cortesia Linguística,
com trechos retirados precisamente deste cap. de «Do Porto a Braga».
Mas
qual foi, então, o cartaz que tanto enlevo causou em Camilo e que, segundo
ele, «revê a actualidade, e significa alguma cousa nos tempos que correm»?
Ei-lo:
“Peira, Dentista e Cirurgião.
“Põe toda a sorte de dentes artificiaes.
Limpa
“os dentes. Extrae-os com a maior Destreza, e
“raizes. Firma os que estão abalados
cortando-os
“arralando-os e pondo-os em boa direcção.
Tira-
“Ihes a dôr, chumba-os. Tira o máo cheiro da
“bocca. Tira verrugas, cravos e calos. Tira a
bicha
“solitária.
“Residente á onze annos na cidade de Braga e
“ao presente na Hospedaria do snr. Fanqueira
no
“Campo de Sanct’Anna n.º....” [Id.:
144]
E
o Escritor comenta, de seguida:
Eis-aqui
outro Herodes da bicha solitaria! Convidei os meus amigos a procural-o em casa
do senhor Fanqueira. Eu queria desmentir com este doutor em dentes o outro
doutor lá de cima, e provar que M. Peira, vindo naturalmente de Paris para
Braga, disputa a Gondifélos a efficacia da mézinha. Os meus amigos não
annuiram. Algum dente que ainda me resta, como sentinella perdida em arraial
onde se deu grande batalha, queria eu entregal-o a Mr. Peira, para que elle m'o
firmasse, cortando-o; processo novo de certo, mas facil para quem extrahe um
dente com a maior destreza c raizes;
o que eu não sei é se elle tambem extrahe raizes com a maior destreza, e dentes. Recommendo, porém, Mr. Peira, não
só a quem tiver verrugas, cravos, e callos, mas tambem á authoridade
administrativa e aos vigias da camara, se lá os ha. Um cartaz destes deve
considerar-se entulho, e o cirurgião que tira cravos é melhor para os trazer que para os tirar. [Id.: 145-146]
[Continuará]
NB1 – Foi
respeitada, nas citações, a grafia da edição consultada.
NB2 – O retrato a meio corpo do Escritor foi colhido em Google+
/ Imagens / Camilo Castelo Branco.
LEITURAS
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto
a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
CABRAL, A., 1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho.
RODRIGUES, D. F., 2013: «”A
excellencia de carnaval” (1856)»,em AQUI
-----------, 2014: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas
Horas de Leitura (18582) [I], AQUI
-----------, 2014a: «Camilo & e
os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[II], AQUI.
-----------, 2014b: «Camilo & e
os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[III], AQUI.
-----------, 2014d: «Camilo & e
os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[V], AQUI.
-----------, 2014e: «Camilo & e os
irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[VI], AQUI.
-----------, 2014f: «Camilo & e os
irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[VII], AQUI.
-----------, 2014g: «Camilo & e os
irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[VIII], AQUI.