021. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [18]
em Duas Horas de Leitura (1857) [VIII]
[Continuação do post anterior]
ERAM seis
horas da manhã, quando a parelha, açodada pelo estalido do chicote, sempre
prodigo das suas amabilidades á entrada de terras grandes, arrastava aos pulos
o côche bambo pelas ruas fragosas de Braga, cognominada “Augusta” por politica
dos Cezares, e condecorada com o epitheto de “fiel” no tempo em que o Porto,
por força de rima, era ”ladrão.”
A respeito
de Braga e Porto o melhor é calarmo-nos.
[Branco, 18582: 131]
De
facto, os quatro amigos [recordem-se: Camilo, Evaristo Basto (E. B.) os irmãos
vianeses Luís (L. B.) e José (J. B.) Barbosa e Silva] devem ter-se levantado e
saído bem cedinho de Famalicão, para às seis da manhã já estarem em Braga.
Apesar
da última frase acima transcrita, Camilo sempre nos vai recordando algumas
rivalidades, remotas e recentes, que, desde há «nove seculos mais ou menos»
terão existido entre as duas cidades.
Braga
parece gostar pouco do Porto e vice-versa, assim como Camilo parece gostar pouco dos
bracarenses. Dos moradores das ruas por onde passavam, o Escritor dá-nos retratos
físicos e morais pouco agradáveis. Segundo ele, os bracarenses são «um povo bem
morigerado» - ia meditando ele – porque «adormeceu rezando o terço e os versos
de S. Gregório, e acordou para levar ao templo o coração lavado com que se
deitou! Aquelle capóte, forrado de baeta, com este calor que faz, é sem dúvida
um grande sacco de penitencia debaixo do qual se escondem os cilicios
expiatórios, quando vão á missa, e o garrafão do verdasco, quando voltam para
casa!» [Id.: 132-3]
E
porque os seus companheiros não lhe
pareciam então propensos a meditações tão graves, Camilo relata o que um
dia passou ao passar na rua onde agora passavam, continuando as suas reflexões (satíricas
e irónicas) a propósito:
Deste e
daquelle lado, estas boas almas rezavam o terço de meias. Eu passei com o
chapeu na cabeça; mas com o espirito cheio de reverencia aos bons costumes
d'esta sancta gente. N'isto, d'um e d'outro lado, suspende-se um padre-nosso, e rebenta uma ladainha de
apostrophes contra mim, a mais amavel das quaes era “fóra, bebado!”
Descobri-me, quando me vi em perigo de levar com um pedaço de escumalha da
forja nas costas, e fui abençoando o zelo d'esta sancta irmandade, que ahi está
posta de atalaia á religião da humildade e da tolerancia, para que se não diga
que a pureza d'ella fugiu d'esta terra, onde ainda ha portuguezes de lei, raça
sem mistura d'aquella que fez com as fogueiras o que esta, para mor honra e
gloria de Deus, quer fazer com a escumalha. Podesse este espirito de caridade
ser contagioso — continuei eu com as minhas seraphicas reflexões — e os homens
seriam todos excellentes creaturas, quebrar-se-hiam reciprocamente as caras em
defeza da fé, perdoar-se-hiam injurias e affrontamentos que não valem para
estes devotos uma palha; por exemplo, fraquezas, que uma refinada etiqueta
chama desdouros, lapsos do femeaço, useiro e vezeiro n'elles, isso que tem, ou
que faz para a salvação da alma? As raparigas, se as tivessemos, davam-se á
caução dos padres, para que elles as retemperassem do sal que resiste ao ranço
do vicio; e, se por más artes de Lucifer, Belzebut, Astharoth, Uriel, Asmodeu,
ou Diabo, a carne se contaminasse, e o ultimo pequeno désse ares do padre que
veio a casa exorcismar os esthericos da mulher, a coisa remediava-se com o
terço á noite, missinha d'alva ao outro dia, e uma formal bebedeira ao domingo,
em que se fariam as pazes, arranchando o padre com duas duzias de frigideiras.
Quam facil não seria reorganisar assim a sociedade que tão afanosos traz os
charlatães de elixires fourieristas, blanquistas, e proudhonianos?! Liguêmo-nos
todos, se ainda é tempo, pelo terço; perdoêmo-nos uns aos outros mutuamente as
velhacadas que nos fizermos; reservemo-nos, porém, o caso exceptuado de
quebrarmos a cabeça ao nosso similhante, se elle a não destapar diante dos
nossos nichos do Padre Sancto Antonio, e S. Torquato, que nos comem o azeite de
meias com as nossas bêrças.
[Id.:
134-5]
E
eis que voltamos a encontrar os nossos amigos vianeses, Luís e José Barbosa e
Silva. O tripeiro Evaristo Basto, esse, foi «visitar suas primas», despedindo-se «por meia
hora», tempo suficiente - digo eu - para as consolar.
E, n'este
discorrer, paramos na estalagem dita Estrella
do Norte.
[…] L. B.
perguntou ao primeiro encapotado onde era o botequim do café-forte. J. B. e eu
seguimol'-o com o intuito de espertarmos com o almejado café o espirito de
analyse, qual convinha a “touristes” d'um tal ou qual calibre.
Mandaram-nos
debaixo d'um renque de arcos, no Campo de Sant'Anna, onde a mão civilisadora,
em 1836, salvo erro, collocou o primeiro e unico botequim bracharense.
Lembra-me, faz hoje cinco annos, vêr alli no batente d'aquella porta um molho
de palha painça pendurado. N'este tempo, o botequim não era exclusivo do animal
bipede: o viajeiro podia almoçar e mais o azemel na mesma locanda: o armario da
cavaca e de pão pôdre [pão de ló] fornecia o grão e a palha para os dois
freguezes economicos. Hoje, não. A botiquineira, instrumento involuntario do
epygramma aos seus conterraneos, deixou de accumular os dois generos de consumo,
e d’esta vez não vendia palha, pelo menos com cartaz á porta. Em compensação,
as suas estantes de legitimo pinho amarello medraram em agua-ardente de
medronhos, licor de canella, e laranjas azedas.
L. B. pediu
café forte. O adjectivo, proferido
com intimativa, deu de nós á botiquineira uma idêa alta. J. B. fallando
francez, fez-nos talvez passar pelos contractadores da illuminação a gaz, ou
delegados russos que vinham fomentar a revolta. […]
Eu, em
quanto o café se preparava atravez dos variados philtros que lhe dão a
fortaleza em Braga, fui comprar uma folha de papel para escrever para a terra.
Em cata do
papel, tive occasião de entrar na tenda contigua ao botequim, e vi uma moçoila
espadauda, escarlate, cachopa de encher o olho desdenhoso do mais enfastiado
veterano dos salões. Estive, vai não vai, a pedir-lhe uma conta exacta das suas
impressões ao vêr-me; mas abstive-me de sondar os segredos do tecido adiposo
que lhe pejava os suburbios do coração. Retirei-me com a mulher entalhada na
terceira potencia d'alma — porque sou extremamente espiritualista — e vim
sentar-me a escrever a minha carta, em quanto L. B. lia um prospecto do
Cosmorama em Braga na noite d'aquelle dia.
“Se viermos
hoje ficar a Braga, de volta do Senhor do Monte — disse elle com a mais comica
seriedade — temos uma noite cheia.”
— Por que ?
— disse J. B.
“Vejam esse
programma.”
Lêmos, e
notamos, entre outros, dous quadros da exposição, que muito nos deviam
deleitar, e instruir sobre dous factos importantissimos, cuja averiguação nos
tinha dado muito que scismar. Era o primeiro:
O
MAGNIFICO QUADRO
DA PESCA DO SALMÃO!
DA PESCA DO SALMÃO!
A pesca do
salmão!
Imagina o
leitor, não visto na pesca da solha e do safio, o que é a pesca do salmão?!
J. B. tinha
visto o Louvre, Versailles, S. Marcos em
Veneza, S. Pedro em Roma, o Tunel, o Lago di Como, e declarou com o coração a rebentar de curiosidade e
riso, que não fazia ideia alguma da magnifica pesca do salmão! L. B. e eu, que a respeito da pescaria, não vamos além da pescadinha marmota e da tainha, estavamos , como o outro que diz, parvoinhos com a gloria de entrarmos nas nossas terras a contar aos ignorantões que nunca viram nada, a magnifica pesca do salmão!
Não riam um
riso tôlo os tôlos que só sabem rir. Eu conheço-os, dos que foram ás duas Exposições, para se exporem aos nossos olhos, na vespera de irem, e depois de voltarem.
Pois ninguem dirá que foram. Este, o que trouxe de lá, foi uma casaca comprada
em Londres; aquelle veio dizer aos seus amigos que o cavallo de tal lord tinha
a clina pintada, e uma malha encarnada no jarrete direito; est'outro d'uma
agua-furtada de Pariz namorou uma collareja, e não ultrapassou a decencia
platoniana, porque não sabia francez. Todos elles com aquella pose, que lhes vêdes, de homens que
viram, se a instrucção pagasse direitos de sahida, crêde-me que passariam na
alfandega inviolaveis ao fisco. São contrabando, sim, mas contrabando no
senso-commum. Estão ahi postos em altura invejada do vulgo sordido, porque o
tendeiro pai, ou o almocreve avô, não podem vir da campa dar-lhes na cara com
os tamancos e os calções de belbutina que lhes cá deixaram para memento. É o que os mata a elles, ainda
assim, a visão dos tamancos e dos calções! Sandeus, porque não hides ver, e
contar á familia o magnifico quadro da
pesca do salmão!
Deixal-os:
elles não lêem isto, nem lêem nada. Andam ahi consubstanciados nos seus
cavallos, e fazem de conta que vieram, porque eram cá precisos; e, medrados ao
bafejo da estupida fortuna, fazem da sociedade, que os acata, o seu incessante
espolinhadoiro. Meu querido tempo, e meu querido papel!...
Vamos ao
outro quadro:
OS
COLLEGIAES SAHINDO A PASSEÍO
NA RUA DA CORREDOURA,
NA CIDADE DE TUY.
NA RUA DA CORREDOURA,
NA CIDADE DE TUY.
Quanto
dariam vossas excellencias, leitores, por verem os collegiaes de Tuy passearem,
como qualquer de nós, na rua da
Corredoura? A circumstancia de serem de Tuy, e a de passearem na rua da
Corredoura, é um facto que, se não palpita, pelo menos escoucinha de interesse!
Abençoadas tintas e abençoadas lentes que, por um pataco, nos raptam os olhos
com maravilhas que a mais fogosa imaginação não traçaria! Que bem empregado
pataco, se eu podesse vêr o expositor, d'après
nature, com uma albarda no dorso, e um collegial de Tuy bifurcado nella!
“Venha o
café, que tudo isto desafia o vomito” — disse J. B. em quanto eu archivava na
minha carteira este documento, que espero não seja o unico das minhas
explorações por estes mundos de Christo.
Veio, em
fim, o café; e, diga-se a verdade, era forte. […]
[Id.: 136-141]
[Continua]
NB1 – Foi respeitada, nas citações, a grafia
da edição consultada.
NB2 - Caricatura da autoria de Francisco Valença (1924). Retrato (gravura em madeira) de Pastor (1874)
[Fragmento da capa do livro, 4.ª ed., 1903]
LEITURAS
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas
Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
RODRIGUES, D. F., 2014: «Camilo & e os irmãos
Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[I], AQUI
-----------, 2014a: «Camilo & e os irmãos Barbosa e
Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[II], AQUI.
-----------, 2014b: «Camilo & e os irmãos Barbosa e
Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[III], AQUI.
-----------, 2014d: «Camilo & e os irmãos Barbosa e
Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[V], AQUI.
-----------, 2014e: «Camilo & e os irmãos Barbosa e
Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[VI], AQUI.
-----------, 2014f: «Camilo & e os irmãos Barbosa e
Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VII], AQUI.
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