sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

024. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [21]
          em Duas Horas de Leitura (1857) [XI]

[Continuação do post anterior.]

            Com este, termino a série de posts dedicados às relações de Camilo Castelo Branco com os irmãos vianeses Luís e José Barbosa e Silva, explícita ou implicitamente referidos na crónica «Do Porto a Braga», cujo primeiro título foi «Peregrinação sobre a Face do Globo», reunida, depois com outros escritos, em Duas Horas de Leitura. Nesta, o Escritor relata com muita fantasia e não menor ironia e, por vezes, algum sarcasmo, o passeio que os três, juntamente com Evaristo Basto, fizeram entre aquelas duas cidades, com paragem e pernoita em Famalicão. Mas o destino final era o Bom Jesus do Monte, estância que, desde muito cedo, o haveria de marcar afetivamente.

As melhores recordações que Camilo teve do Bom Jesus foram depois de 1856, ano em que, com os três amigos, visitara pela segunda vez. A primeira foi quando tinha 11 anos, em 1836, após a morte do pai, a caminho de Vila Real, onde ficaria, juntamente com a irmã Carolina, aos cuidados da tia paterna, Rita Emília. [Ver AQUI.] Depois do ano da crónica referida, Camilo visitou muitas vezes a estância, na companhia de Ana Plácida, ainda ela vivia com o marido, Manuel Pinheiro Alves. Numa delas, os dois amantes terão tido oportunidade de ser um casal feliz, física e psicologicamente, pela primeira vez. E outras se terão seguido, evidentemente.

[Escadório atual do Bom Jesus do Monte. Fotografia colhida em Google+ / Imagens / Bom Jesus do Monte]

Mas a recordação pior que o Escritor nos dá e revela do Bom Jesus é da «hospedaria real», onde os quatro «peregrinos» tencionavam jantar e pernoitar. Jantar ainda jantaram. Agora dormir, foi impossível, devido à falta de higiene, a tal ponto de Camilo de desejar ver exposto «ao azorrague e às moscas o taverneiro estabelecido no Senhor do Monte, como numa na «picota». [Branco, 18562: 165]
E prosseguindo, relata Camilo:

Quando os nossos olhos mortaes acharam este foco de infecção, sentimos spasmos no esophago, e estivemos a lançar naquelle chão maldicto o café forte de Braga. Fôramos alli como a um manancial de inspirações saudosas, e encontramos uma Aganippe de... d'onde beberam, talvez, os poetas que decoraram as paredes d'aquella sentina. Nunca os beiços se te descollem d'essa fonte, taverneiro ignobil! Já que não approveitas as grossas nascentes, que te jorram á porta, para lavares o teu bragal, ainda eu te veja, sicario, reduzido, não a pó, que é esse o commum destino da humanidade, mas.... Para elles são vozes no deserto estas apostrophes; mas, se ellas chegarem aos ouvidos e ao illustrissimo nariz da camara municipal de Braga, a ella incumbe vigiar o quarto ou cloaca n.º 2 da immunda tasca, e remover d'alli aquellas colchas, fumigar aquelle quarto, e desalojar o sordido taverneiro que alli está envergonhando a terra, provando que elle é mais immoral do que foram todos juntos os judeus das capellas visinhas.
Anojados e phreneticos corremos ao quarto dos nossos rapazes a relatar o escandalo. E[varisto] B[asto] regougava que o deixassem dormir, transigindo assim momentaneamente com a impudencia. L[uís] B[arbosa] pediu com ancia umas piugas, e saltou da cama, livido de terror. Então juramos não passar alli a noite, e reunimos em sessão para decidirmos o que devia comer-se, menos susceptivel da influencia suja do cozinheiro. Meditada profundamente a proposta, e recolhido cada qual em sua consciencia, levantaram-se todos como um só homem e preromperam em vozes unanimes, dizendo: — “Nós somos livres, o nosso estomago livre é, e, assim queremos bacalhau.”
E. B. viera juntar o seu brado á causa da justiça e da moralidade. […]
Em quanto o bacalhau se cosia, fomos desenjoarnos com o ar purissimo do arvoredo.
[…]
Houve silencio de alguns minutos. Foi E. B. que o quebrou assim:
“A mim disseram-me que enviasse d'aqui um suspiro, nas azas da saudade, ao coração saudoso... não direi de quem, porque o amor mais sancto é o que mais se resguarda no sanctuario do mysterio. Um suspiro saudoso! Como darei eu um suspiro?! É forçoso que se cumpra o sacrifício.” Disse, e soltou um som cavo, coisa inclassificavel entre o arrôto e o espirro.
Não sei se os leitores se riram; eu não pude. Aquelle gracejo para mim foi um incentivo de mui dolorosa meditação. E não pude guardal-a só comigo: revelei-a assim aos meus amigos:
“Se nos aqui reunissemos antes dos vinte annos, E. B. não teria senão um suspiro em caricatura com que saudasse neste logar a memoria de uma mulher? Os nossas corações teriam, apenas, uma ironia para celebrar debaixo d'este céo o amor? É bem lastimavel esta aridez de quatro homens, tres dos quaes [C., J. B. e E. B.] não ha muito que revellavam nos versos paixões profundas, extasis do céo, amores incendiarios, saudades sanctas de uma outra vida que não é esta! Que almas tão decahidas as nossas! Este local é como um padrão onde devem vir afferir-se os corações que perderam no mundo o seu valor. Quem não traz para aqui a imagem de uma mulher que possa cá purificar-se em imagem d'anjo, é bem infeliz! Pois nem ao menos uma saudade do que fomos? nem a esperança póde já reviver? Que sentes tu L. B.?
[“]Nada.[“]
“E tu, J. B.?
[“]Nada: estou prodigiosamente estupido. Preciso estar callado.[“]
“Mas no silencio o que ouves? o que dizes?
[“]Nada: é um cáhos de idêas, sem significação.[“]
“E tu, E. B. que sentes?
[“]Vontade de jantar. Essas perguntas são vans e pretenciosas. Trinta annos passados, volta-se a ampulheta.[…] É chegada a tua vez: e tu que sentes? [“]
  Eu ia dizer o que sentia, quando divizei dous vultos sentados á sombra de uma arvore. […]
[…] Não sei d'olhos mais bonitos, nem de cabellos negros que tão bem dissessem com o marfim do collo! Não sei quem ella é, nem conheço o ditoso conjuge; mas não sirva isto de embargo aos meus parabens a ella e a elle. Vivam muitos annos, e tenham muitos meninos, que eu vou comer o meu caldo negro de Sparta que corresponde ao bacalhau de Braga.
Foi um devorar homerico ! Tudo o que está dito na Gastronomia, poema de Berchoux, é inferior áquillo! Por um auspicioso systema de compensação, conheci que a vitalidade dos meus amigos refugira do coração para outra viscera dos suburbios. Provou-se o elasterio do estomago, e levou-se á evidencia que as brizas e agua fresca não eram suficiente alimento para nós. Nunca Shakspeare ousaria dizer que Hamlet vivia d'ar e esperanças, se o pobre moço, em vez de andar á bordoada com o padrasto, viesse até ao Bom Jesus de Braga impregnar-se da molecula saborosa do bacalhau. Inaugurada a realeza do estomago, como prova do maximo adiantamento, é difficil morrer de pena que não seja a de uma indigestão.
Foi justamente a morte que eu muito receei lá em cima. Ficamos n'um spasmo de tres horas, depois do jantar. Confesso que me pareceu feia a natureza, e até feias as mulheres que me sorriam divinas quando o bacalhau não era ainda metade da minha existencia vegetal. Este estylo ressente-se do meu estado de então.
Immalamos, e partimos para Braga.
Dentro do carro, fomos rodados de modo que o regurgitamento cedeu aos choques.
Entramos na cidade ao lusco-fusco.
Desde a entrada até ao campo de Sanct’Anna fomos recebidos com assobios e guinchos e mugidos dos garotos, aprendizes de chapelleiro, que vinham ás portas das officinas ganir. Os nossos antigos descobridores quando saltavam em praia de barbaros eram assim recebidos. O mais é que os patrões das officinas pareciam folgar naquelle alarido da canalha. Que terra! Aquillo poderá ser gente? O que lhes vale é o terço depois que uivam. Para que quererá Deus lá em cima similhantes alarves?
Chegamos á hospedaria da Estrella do Norte.
Vimos um par de grossas pernas de uma redonda matrona que se estirava o mais commodamente que se póde sobre uma cama, e dava gratis o espectaculo aos que lhe passavam deante da sua porta. Pareceu-nos bastante ingenua a nossa vizinha de quarto! Os commentarios ás pernas foram interrompidos por um robusto “aqui-d'el-rei” que vinha da rua.
Saiba-se o que é isto. E. B. desceu á rua, e nós fomos á janella. Vimol-o innovelar-se na mó do povo que se apinhava em redor da victima lamuriante.
Depois lá debaixo cá para o segundo andar, E.B. com toda a força dos seus pulmões, exclamou:
“Foi o fidalgo que lhe bateu.”
Apenas proferida a palavra “fidalgo!” todo aquelle gentio escoou-se pelas travessas lateraes, e o cidadão bracharense, desamparado, achou que era quéda sobre o couce do fidalgo enrouquecer gritando pelo rei, que valia menos alli que o cabo de policia.
[…]
Vou concluir.
Passamos uma noite atormentada. A legião dos persovejos lá de cima tinha destacamentos cá em baixo. L. B. e E. B. andaram tres horas com os enxergões ás costas. Eu descobri na minha cama um animal novo; não era bem insecto nem mollusco; repelli-o com toda a força da minha indignação, e adormeci.
Ás tres horas da manhã estavamos em marcha. Os dous irmãos Barbosas para Vianna, sua bella patria: Evaristo Basto, e eu para o Porto.
Agora seriedade:
No abraço de despedida, conhecemos que ainda tinhamos coração, um grande coração para a amizade. […] [Id.: 166-173]

NB1 – Foi respeitada a grafia da edição consultada. O sinal […] indica fragmentos que não foram transcritos.
NB2 – Em Duas Horas de Leitura encontram-se mais dois escritos em que o Camilo se refere aos irmãos vianeses Barbosa e Silva, como a seu tempo se verá. Todavia, porque diretamente relacionada com a crónica «Do Porto a Braga», apresentarei, no próximo post, uma carta que o Escritor escreveu a Evaristo Basto, em 1864, e onde o romancista volta a referir-se, naturalmente, aos irmãos Barbosa e Silva. Essa carta encontra-se na narrativa No Bom Jesus do Monte (1864).

LEITURAS
BRANCO, C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
RODRIGUES, D. F., 2013: «”A excellencia de carnaval” (1856)»,em AQUI
-----------, 2014: «Camilo faz hoje 189 anos». AQUI
-----------, 2014a: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [I], AQUI
-----------, 2014b: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [II], AQUI.
-----------, 2014c: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [III], AQUI.
-----------, 2014d: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [V], AQUI.
-----------, 2014e: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VI], AQUI.
-----------, 2014f: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VII], AQUI.
-----------, 2014g: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [VIII], AQUI.
-----------, 2014h: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [IX], AQUI.
-----------, 2014i: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582) [X], AQUI.


5 comentários:






  1. A investigação e a leitura que nos "pôs na mesa" é altamente substancial. Compete a todos os "hóspedes" agradecerem os momentos de fruição...

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    1. Muito obrigado, Prof. ª Luísa. As leituras que Camilo nos oferece são sempre prolongados banquetes de festa e boa disposição. Mesmo quando carrega nos condimentos... Afetuoso abraço.

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    1. David, obrigada pela investigação que tens feito, no teu blogue, sobre a viagem de Camilo Castelo Branco, do Porto ao Bom Jesus, inscritos, com outros, em Duas Horas de Leitura. E, nunca é demais, salientar a homenagem que fazes a Camilo, com a partilha do teu esmerado trabalho.
      Dou por mim, a sentir-me fascinada com a amizade do romancista e, através destes teus relatos, uma infinita admiração. E em boa hora, te decidiste por mais este teu labor, sabendo-te ligado a Viana, por algumas identidades. E nos deste a conhecer uma parte da vida do escritor, enquanto viveu em Viana, sabendo-se que Ana Plácido o acompanhou, na vivência de uma das maiores paixões, relatadas, na segunda metade do século XIX, tendo para sua maior tranquilidade, dado uma desculpa, que quis verosímil.
      Todos sabemos que valeu aos amantes, prisão no cárcere da Cidade Invicta.
      Essa amizade, grande, com os irmãos Barbosa, de Viana, revelam, também, a essência da alma de Camilo. E dos próprios. Ainda a acrescentar, a de Evaristo Basto, jornalista, jurista e político, do Porto.
      Não posso deixar de referir o teu mérito, com este trabalho, fazendo jus ao que disse um dos mais ilustres homens da Cultura Portuguesa e das suas análises, Eduardo Lourenço que, como anotaste, diz que Camilo não pede senão para ser lido.
      Regressando à célebre viagem Porto -Braga, com os citados amigos, é-nos oferecido, em linguagem da época, um verdadeiro retrato, colorido, ambiental, sentimental, passional, (lembre-se os encontros, no Bom Jesus, com Ana Plácido), satírico, hilariante, não só do ainda, hoje, considerado "Ex-Libris" de Braga, como toda uma picante e crítica análise de como se vivia na cidade de Braga e que Camilo Castelo Branco, num verdadeiro rasgo de ironia mordaz, nos oferece.
      Muito tenho a descobrir e todas e todos os que desejarem saber mais, sobre a vida exuberante e apaixonante, de Camilo, por estas terras nortenhas.
      Termino, já vai longo, desculpem, com uma citação de Evaristo Basto, após um silêncio dos viajantes, na eterna beleza do Bom Jesus:

      "A mim disseram-me que enviasse d'aqui um suspiro, nas azas da saudade, ao coração saudoso... não direi de quem, porque o amor mais sancto é o que mais se resguarda no sanctuario do mysterio. Um suspiro saudoso! Como darei eu um suspiro?!"

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  3. Muito obrigado, Margarida, pelo teu comentário, sobre este e outros "posts" que tenho dedicado a Camilo e às suas relações de amizade, física e jornalísticas (temporariamente) com Viana [do Castelo]. Quando fixei residência em Viana e fui lendo e conversando sobre a presença do Escritor por estas bandas, fui-me convencendo de que seria interessante, pelo menos, conhecer melhor e mais profundamente tais relações. Ora para confirmar com base documental o que se dizia, ora para reinterpretar outras informações e dados biobibliográficos camilianos. Com a aposentação, chegou a disponibilidade de que, para o efeito, precisava. Felizmente que encontrei (tenho encontrado sempre), na direção da Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, o apoio indispensável e as condições à realização deste trabalho. Ao dr. Rui Viana e ao dr. Porfírio Silva os meus agradecimentos.

    Não, Margarida, camilianista nem por sombras sou, mas vou continuar a ler e reler Camilo. Com paixão e a crítica de que for capaz.
    Por último, Margarida, o que se faz com sincero afeto não se agradece. Não me agradeças, por isso, o pouco que venho fazendo por «Camilo em Viana» e sobretudo por «Viana em Camilo».

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