023. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [20]
em Duas Horas de Leitura (1857) [X]
Depois
de terem pernoitado na cidade de Braga, os quatro peregrinos [Camilo, Evaristo
Basto e os irmãos vianeses Luís e José Barbosa e Silva], seguiram para o Bom
Jesus do Monte. O relato camiliano da viagem é conforme a seguir a se lê.
Apenas se retiraram alguns fragmentos, para não tornar este post ainda mais longo e por não dizerem
explícita e diretamente respeito aos irmãos Barbosa e Silva.
Ora
façam o favor de ouvir, com atenção divertida, o nosso Escritor:
PRIVADOS
uma grande hora das salgadas observações de E[varisto] B[astos], fomos bater á
porta da familia que o fizera esquecer de nós, e, se a myopia me não enganou, a
preferencia era racional. Mulheres, ainda que sejam primas, fôram, são, e
hão-de ser, cada vez mais, a maxima formosura d'este planeta. Se as tiram de
cá, isto é immundo, a vida é um desterro, e a vaidade, o coração, a bravura, o
talento, a gloria são palavras sem significação. O que restaria? Um enxame de
bipedes, agatinhando n'uma bolla, feiamente achatada para os polos, coisa
ridicula, que fez dar risadas estrondosas áquelle Micromegas habitante da
estrella Syrio, de que falla
Voltaire.
E. B.
surgiu na janella, empunhando uma taça de café, na mais doce e cordeal
beatitude de estomago. […] Lá, do balaustre da varanda, Pilatos de si mesmo,
mostrava-se-nos; e nós, ralados de inveja, judaisando, estivemos quasi a bradar
á familia que o crucificasse.
Aninhados
na carroça, começamos a transpirar copiosamente. A testa brunida de L[uís] B[arbosa
e Silva] gotejava como uma catarata. J[osé] B[arbosa e Silva] soprava como um
Eolo de fraque. E. B. contava-nos em estylo inspirado a excellencia do café, a
pureza do leite, e as delicias do pão quente com manteiga. Eu, cobrindo-me com
a manta-chall, se não estivesse tão safada a imagem do Cezar cobrindo-se com a
tunica, diria que um raio do sol oriental se me coava pela cabeça, ardente e
pungente como o punhal de Brutus.
Oh! a
suavissima estrada por onde subimos para o Senhor do Monte! Aquillo é que é o
desconjuntarem-se as mollas do carro, o partirem-se os cavallos pela espinha, o
desarticularem-se os femures á gente! Cada barrocal, cada corcovo, em que se
deslocava uma entranha da sua inserção primitiva! Iamos alli todos innovelados
como embrulho de annhelidos, mas annhelidos ossudos, e agudamente ossudos. A
cada balanço, seguia-se a desordem, a anarchia dos joelhos, a deslocação, e o
pavoroso “sauve qui peut!” [… … … … … …].
Nesta
angustia, os cavallos estacaram. Não era a indecisão do burro de Buridan que os
sostinha: eram as vascas da morte! A parelha derretia-se no suor glacial do
trespasse. Parecia de manteiga. O sota, consternado o semblante lagrimoso o
olho, e verde de susto parecia pedir-nos que apeassemos. E. B., obdurado e
descaridoso, não queria sahir de entre as bambinellas da dorna. Os outros
saltamos para testemunhar a catástrophe em terra firme. E. B., o pertinaz,
cedeu por fim ás exclamações do orador pro équibus,
e desceu.
Coincidencia
desastrosa! Dois lorpas, vindos de cima, bifurcados em garranos d'uma
transparencia ideal, ao perpassarem por nós, deram de esporas nos ilhaes
membranaceos dos bichos, para nos darem d'elles e dos garranos consubstanciados
uma alta ideia. Era muito para vêr-sel Foi um distribuir de couces espantoso
para todas as direcções possiveis na estrella dos ventos! Nós, inermes e
espavoridos, achatamo-nos com as paredes, dando place au droit... do couce, o que a nenhum de nós acontecia pela
primeira nem pela segunda vez, e tem de acontecer muitas outras ainda...
A nossa
parelha, ferida nos brios como o leão da fabula, guiou as orelhas, assoprou um
resfôlego de bravura senil, e correspondeu com dous pinotes tersos e compactos
na anca dos rocins, especie de quilhas de barco saveiro. Foi um expediente
feliz! Os garranos compartindo em desastres e glorias com outro quejando do
fidalgo manchêgo, recuaram até á parede, e, no stupor mudo em que ficaram,
pareciam culpar os donos como responsaveis daquella indecorosa sahida! Quando
veremos nós certos garranos cavalgarem certos homens, e não estes áquelles?
Quando a fraternidade não fôr uma palavra van.
Galvanisados
pelas fortes commoções, os nossos triumphantes cavallos cobraram espiritos,
tossiram impacientes, e, graças ao estrepito do chicote, treparam, gemebundos,
com o carro vazio até ao cimo da calçada precipitosa. D'ahi ao Senhor do Monte
é incalculavel o liquido caudal que nós, quatro esponjas humanas apertadas pelo
calor, distillamos.
Não
diziamos palavra. A poesia ia-nos literalmente aguada. A floresta balsamica,
fresca, e encantadora passamol-a sem levantarmos os olhos das escadinhas
ingremes. J. B. ainda quiz aspirar um sorvo daquelle frescor, e talvez saudar
com um extasis do coração natureza tão rica. Eu, que sou passaro bisnau nestes
enlevos poeticos, quando a camiza suada se coze ao corpo, disse-lhe que
aquelles seus arrobamentos importavam um defluxo, um catarro, uma pleurite, uma
pneumonite, uma laringite, e uma gastrite. J. B., aterrado por este indice
pathologico, fugiu escada acima a metter-se na hospedaria, que se diz real.
Realmente
taverna!
E eu vos
conto.
[… … … … … … … … … … … … ]
Almejando
uma cama onde refossilassemos as reliquias de vida que salvaramos da tormentosa
jornada, chegamos á hospedaria real,
e pedimos um quarto com quatro camas. “Não ha senão dois quartos com tres
camas” respondeu um gamenho em socos e mangas de camiza côr d'assucar
mascavado. — Mas nós queremos quatro camas — replicou-se. “Só se fôr uma no
soalho” redarguiu o bruto coçando os cotovellos.
Transigimos,
recommendando-lhe que nos desse lençoes lavados.
Entramos
pela cosinha, e descemos para um corredor, marginado de quartos, em forma de
penitenciaria. Vimos ahi uma ama de leite cantarolando com sete rapazitos que
grunhiam atraz della. Logo tive isto como ruim agouro.
Abriram-se-nos
os quartos, e eu fiquei com J. B., protestando dormir seis horas. Não reparamos
na limpeza, nem na porcaria. Deitamo-nos, e acareamos o somno fallando não me
lembra em que. D'alli a pouco uma voz argentina de mulher fallou á porta...
Preparem-se para uma aventura. Vão vêr que as scenas romanticas não são
exclusivo de Paris; podem dar-se em qualquer taverna de Portugal.
Alguma
coisa extraordinaria deveria topar o leitor nesta cadêa de vulgaridades chans,
e chatas. Chegou a occasião.
Era, pois,
uma voz argentina de mulher; daquellas vozes que se vos philtram peito dentro
até á fibra mais recondita do pericardio, que é a bolsa do coração, posto que
bolsa e coração sejam incompativeis.
E aquella
voz soava-me nos ouvidos dulcissima e sympathica [...].
Era, pois,
uma voz argentina a daquella mulher. O coração dava-me pulos no peito. Ouvil-a,
e morrer, meu Deus!
“Ó José
Joaquim!” dizia ella.
Quem será o
ditoso mortal que se chama José Joaquim? — dizia eu a J. B.
“José
Joaquim!” repetiu aquella voz feiticeira.
Bole-se na
aldraba... a porta chia...
É ella!
Visão febril!
Metteu
dentro um segmento de cabeça, viu-nos na attitude innocente do homem
primitivo... recuou; e eu, para salvar a honra surprehendida, e a natureza sem
artifícios pilhada em flagrante, soltei um ronco estridulo como o dos sete
dormentes reunidos.
E a voz
dulcissima calou-se para nunca mais se ouvir!
E acabou-se
o conto. Tudo o mais que os meus imaginosos companheiros disserem não é
verdade. Desde então para cá não sei o que se fez em mim de tetrico e
sepulchral ! Quando ouço proferir José
Joaquim, tenho febre, e mando para a botica a garrafa de tizana. […] Porque
não nasci eu José Joaquim!?
Agora, uma
pedra sobre este acontecimento: não haja só pedras para os processos de notas
falsas, e para as syndicancias judiciarias. Não se falle mais n'estes tres
escandalos.
Bemaventurados
são os que dormem. Eu e o meu infeliz companheiro de quarto não provamos a
consolação do dormir. Uma horda de persovejos, sahida das furnas d'um velho
catre de cerdeira, estendeu-se em atiradores sobre o meu braço esquerdo, e
d'ahi convergiu em polotões, que manobravam entre a primeira e duodecima
vertebra dorsal. O quartel general era no pescoço, e os piquetes estendiam-se
até ao calcaneo, em ordem de batalha que faria inveja ás milicias de Tondella.
Eu dei um
salto como Guliver inçado de liliputianos; soltei um grito stridulo como o do
homem apunhalado traiçoeiramente pelas costas. J. B. ergueu-se hirsuto e
pávido, vociferando imprecações contra o assalto inopinado dos persovejos, que
á maneira dos ultimos godos, sahindo da sua Covadonga de pau amarello, lhe
vinham de arrancada sobre os tecidos adiposos. Conceda-se a uma dôr legitima
esta analogia entre persovejo e godo.
Saltamos
fóra dos leitos, e abrimos as janellas. Os covardes retiravam em desordem,
rareadas as fileiras. Nós contemplavamos, pállidos e enfiados, aquella canalha
villã.
Era
impossivel reconquistar o socego. Lamentamos de cocoras, como Mario em
Minturnes, o nosso infortunio, e entramos a lêr as inscripções das paredes.
Não é
prudente nem preciso dar de todas exacta conta. Na sua maior parte são
innocentes asneiras. Aqui é um glotão que nos declara que estivera alli a comer
(não diz o que) e mais o seu compadre João, no dia tantos de tal. Alli é um
sandeu que levantou as patas dianteiras e rabiscou na parede umas trovas que
consagra á sua amada, que deve ser uma fêmea digna de tal varão. Acolá é um abaixo
assignado de muitos que attestam terem comido bem, o que lhes não ha-de
acontecer em anno de carestia de feno. Em fim:
……………………………… la canaille
Ecrit son nom sur la muraille.
Uma quadra
que conservo de memoria, com a sua orthographia, é esta:
Ó sr. do
monte, tende cuidado
Cos
mezarios que vos servem que são ladrões.
Comem mais
do que vos dão,
E engulipam
tres partes das raçoes.
Esta coisa
tem tal ou qual phylosophia, em quanto a mim. Se estivesse em prosa, valia a
pena de ser estudada, esgaravatada, e dissecada até encontrar-se a incognita do
problema.
Vê-se que o
poeta (porque não ha-de ser poeta?)
aconselha o Senhor do Monte que se acautelle dos mezarios. É ousadia ímpia dar
conselhos ao Mestre por excellencia. Nem Judas, nem Poncio, nem Caifaz, ousaram
tanto. Chama concussionarios aos membros da Meza... porque comem mais do que o
Senhor do Monte. Podera não comerem! Os devotos mezarios comem como comeram já
outros mais devotos que elles. Se o poeta reparasse na primeira capellinha á
direita, veria que os apostolos comeram um cordeiro assado, e os christãos
primitivos pouco mais faziam, nas catacumbas, excepto a oração, que não é menos
frequente em Braga, onde a semente evangelica em anno fertil dá um por cem.
Accrescenta o truculento e ominoso poeta que os ditos mezarios engolem tres
partes das rações. É engolir de mais!
[… … … … … … … … … … … … … …]
[Branco, 18582:
153-161]
[Continuará]
NB1 – Foi respeitada, nas
citações, a grafia da edição consultada.
LEITURAS
BRANCO,
C. C., 18582: «Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura.
Porto: Cruz Coutinho.
RODRIGUES,
D. F., 2013: «”A excellencia de carnaval” (1856)»,em AQUI
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2014: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas
Horas de Leitura (18582) [I], AQUI
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2014a: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas
Horas de Leitura (18582) [II], AQUI.
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2014b: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas
Horas de Leitura (18582) [III], AQUI.
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2014d: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas
Horas de Leitura (18582) [V], AQUI.
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2014e: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de
Leitura (18582) [VI], AQUI.
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2014f: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de
Leitura (18582) [VII], AQUI.
-----------,
2014g: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de
Leitura (18582) [VIII], AQUI.
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2014h: «Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de
Leitura (18582) [IX], AQUI.