004. VIANA EM CAMILO [03a]
[A Bruxa de Monte Córdova (1867)]
Regresso, neste post, a A Bruxa de Monte
Córdova, de Camilo, depois de o ter feito já AQUI, a apropósito das referências que o Escritor faz, neste
romance, a Viana e à Senhora da Agonia.
Desta vez, porém, as referências
dizem respeito a Pita Bezerra, personagem secundária no enredo da narrativa, mas
sinistra figura do miguelismo. O romancista nada nos diz sobre a sua naturalidade,
talvez por simpatia para com esta cidade e sua gente, mas José Rosa de Araújo,
referindo-se ao mesmo indivíduo, diz que Camilo «nos dá uma versão realista,
pavorosa, do tumulto popular que assassinou barbaramente, nas ruas do Porto o
coronel Pita Bezerra, nascido naquele solar de Darque, há muito alianado [sic] sito mesmo à beira do rio [Lima]».
[Araújo, 1980: 3]
De facto, assim aconteceu, embora a realidade
romanescamente ficcionada não seja o relato da realidade histórica. O bárbaro episódio situa-se num tempo de
guerra civil, de permanente instabilidade política e convulsão social. Mas Camilo
também nos mostra, antes da referida vindicta popular, exemplos de como o nobre
Pita Bezerra despoticamente terá atuado, enquanto oficial do exército miguelista,
sobre a população civil que não se declarasse adepta e seguidora das ideias absolutistas
(também ditas realistas, ao tempo) e/ou
não contribuísse, com tudo o que tivesse, para a defesa do «trono e do altar», simbolizada
na figura de D. Miguel. O povo, por isso, logo que pôde, justiça fez pelas
próprias mãos. Apesar dos veementes apelos em contrário, arriscadamente feitos
por uma das persongens mais simpáticas de A
Bruxa, o solitário, clarividente, pacífico
e humano velho frade beneditino Jacinto de Deus.
A primeira referência encontra-se na
passagem que, depois de brevíssima contextualização, transcrevo a seguir.
Aos 80 anos, despedido do convento de S. João de Alpendorada (Marco de
Canaveses), por se recusar a pegar em armas, e, por isso, suspeito de
simpatizar com os malhados (assim
eram chamados, ao tempo, os adeptos do liberalismo), fr. Jacinto de Deus, vai a
caminho da sua aldeia, «vizinha do Arco de Baulhe, em terras de Basto». É
interrompido, a dado passo, por tropas liberais, insultado por alguns soldados e
agredido por populares, sendo de imediato conduzido a Penafiel e daqui ao Porto.
Sumariamente interrogado pelo tenente-general Stubbs – «velho asneirão, que tem
nas veias agua chilre quando as não tem a estoirar de vinho do Porto», segundo um
sargento –, o oficial inglês não deu a menor importância ao velho frade e
mandou-o embora.
Fr. Jacinto regressa à sua aldeia,
acompanhado por dois sobrinhos, a cujo pai, entretanto, tinha pedido auxílio,
«desviando-se já de um, já de outro bando» dos contendores. Chegado a S. Pedro
de Alvite (Cabeceiras de Basto), procura e encontra o irmão mais velho de Tomás
de Aquino. Este é aquele ex-frade que, enquanto conventual se chamou Tomás de
S. Plácido, de quem já falei AQUI. Ex-frade que, entretanto, acabara de morrer, em 5 de
setembro de 1833, na guerra de Lisboa, lutando pela causa de D. Maria II. É
durante a conversa que trava com o irmão mais velho deste liberal ex-frade que
fr. Jacinto de Deus encontra, pela primeira vez, na narrativa, Pita Bezerra.
Desceu o morgado ao terreiro da casa,
reconheceu o amigo de seu irmão e disse-lhe sacudidamente.
– O doido lá o atravessaram as balas em
Lisboa. Foi a deshonra da nossa casa. O pae morreu na defeza do altar, e o
filho acabou na fileira dos atheus.
– Seu pae defendia o altar? – perguntou
frei Jacintho.
– Pois não sabe que os liberaes de Fafe
o mataram no Ladario? Vossa paternidade está-se a fazer parvo!
– Constou-me que o mataram; mas disseram-me
que o senhor Simeão d’Aquino andava agarrando homisiados para os entregar áquelle
grande ministro chamado João Branco, o qual decerto não era ministro do altar.
– Podéra não! – tornou o irmão de Thomaz
com certo jubilo de ver já notoria a dedicação de seu pae. – E vossa
paternidade, se podesse, não os agarrava tambem?
– Agarrava para escondel-os do pae de vossa
senhoria.
– Que tal está o patife do frade! –
exclamou um official de grandes barbas, arrastando a espada, e coriscando dos
olhos ascuas de cólera.
Frei Jacintho de Deus encarou
serenamente no temeroso homem, deante do qual todos se affastavam e descobriam,
e disse:
– É vossa senhoria o senhor Pitta
Bezerra, se me não engano.
– Sou.
– Conheci-o muito novo e docil menino
em casa de seu tio o senhor capitão mór de Cabeceiras Serafim Pacheco dos
Anjos.
– E d’hai? – bradou o celebrado carnifece.
– Cuida que não o mando despir e chibatar, seu indigno frade, que ousa dizer
que escondia os malhados do justo castigo que os espera?
– Apoiado! – exclamou o irmão de Thomaz
de Aquino.
– Eu lhe direi, senhor – redarguiu o
monge –, esconderia da ira inconsiderada do seu inimigo todo homem em afflição;
esconderia no meu habito o senhor Pitta Bezerra, se amanhã os seus inimigos
viessem bradando que era justa vingança matal-o. A todos esconderia, a mim é
que me não escondo dos homens; esconder-me-ia só de Deus, se podesse. Póde pois
vossa senhoria mandar-me chibatar, se n’isso lhe vae satisfação.
– Não m’o peça segunda vez! – bradou o
capitão de infantaria 13. – Cadeia com elle e com estes que o acompanham!
– Estes são innocentes, que ainda não
proferiram palavra, senhor Pitta Bezerra! – disse o monge. – Parece-me justo
que os não prendam.
– Não me pregue lerias! Ferros com
eles, antes que os mande passar pelas armas!...
Alguns milicianos de Guimarães rodearam
o frade e os sobrinhos com ar de constrangidos. Pitta Bezerra, como os visse
froixos na diligência, bradou:
– Querem ir todos a pontapés?
Os presos entraram ao anoitecer na
cadeia das Pereiras. Os mancebos choravam e o tio frade dizia-lhes:
– Então, rapazes! Chorar!? que pusillanimes
sois!... Não vos envergonham os meus oitenta anos! Eu tambem nunca pernoitei
entre estes ferros; mas, se me não engano, o somno das consciências quietas não
estrema o carcere nu, de uma boa alcova cortinada. Se Deus vos deparar uma
cama, muitas graças lhe daremos.
[Branco,
1867: 129-131]
E quem foi, então – perguntar-se-á – esse
celebrado carnífice Pita Bezerra?
A Enciclopédio
Portuguesa e Brasileira de Cultura (vol. XXII, pp. 16-17), traz o seguinte
registo biográfico de João Pita Bezerra:
Oficial do Exército, n[asceu]
em Viana do Castelo em 10-XII-1792, m[orreu] tràgicamente no Porto, em
20-III-1835, quando tinha ainda a patente de capitão. Descendente de família
nobre de Darque, era partidário acérrimo do miguelismo. No decurso das lutas
civis, nos anos de 1828 a 1832, salientou-se, principalmente no Porto, em
perseguições, tortura e vexames em plena rua, quer nos assaltos a domicílios,
quer no comando da cadeia, que por vezes assumia. Quando o seu partido foi
vencido, fugiu para Melgaço, andou a monte e, por fim, refugiou-se na sua
residência em Darque, onde foi preso em Agosto de 1834. Durante a marcha para
Viana do Castelo foi defendido com muito custo pela escolta, constituída por
vinte soldados de infantaria, contra a multidão que o apupava. Os mesmos riscos
teve de suportar quando o levaram pela estrada, de Viana para o castelo da Foz
do Douro. Não foi abrangido pela amnistia de 17-V-1834 e em Jan[eiro] de 1835
foi condenado a prisão. Pouco depois era denunciado, por uma carta que remetera
para Melgaço, como implicado numa conjura miguelista. Novamente processado,
quando saía, escoltado, da viela do Correio, de regresso do tribunal, onde fora
interrogado por um juiz, para a cadeia, uma multidão enfurecida subjugou os
soldados e matou o preso, cujo cadáver foi depois arrastado pelas ruas e
lançado ao Douro.
Segundo se leu acima, Rosa de Araújo
diz que este Pita Bezerra nasceu num solar de Darque, situado junto do rio
Lima. Que memórias haverá, ainda em Darque, desse oficial miguelista e da
existência e estado do referido solar? O primeiro resultado é esta imagem:
(Fotografia de Gualberto Boa-Morte,
em Oliveira, 2011: 115)
Agradeço ao Salvador Vieira a
autorização da reprodução da fotografia.
Este bloco de casas, situado junto do
rio Lima, terá pertencido aos Pita Bezzera. Sobre esta família nobre, ver
Norton, 1983. A casa mais alta, à esquerda, parcialmente reproduzida na
aguarela, terá sido propriedade, habitação e refúgio do caudilho miguelista. Vou colher, todavia, mais informações, de que darei conta no
próximo post. Porque falta apresentar,
ainda, o episódio onde Camilo, n’A Bruxa
de Monte Córdova, narra o fim trágico deste Pita Bezerra.
Leituras
ARAÚJO,
José Rosa de, 1980: «Camilo e Ponte de Lima». Limiana, n.º 35. Ponte de Lima: jornal Cardeal Saraiva, de 29-02.
BRANCO,
1867: A Bruxa de Monte-Cordova.
Lisboa: Livraria de Campos Junior.
NORTON,
Manuel Artur, 1983: «Carta de brasão de armas LV (Os Pitas de Darque)». Cadernos Vianenses, Tomo VII . Viana do
Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 42-56. Também AQUI.
OLIVEIRA,
Madalena, 2011: Salvador Vieira – Traços
do Homem e do Artista. (Pref. de Maurício de Sousa). S/L: ALERT Life
Sciences Computing.
RODRIGUES,
David F., 2013: «Viana & Camilo – Presenças e situações». A Falar de Viana.
Viana do Castelo: Vianfestas; pp. 207-213.
---------------,
2013: «Viana em Camilo [01]», em http://vianacamilo.blogspot.pt/2014/02/002.html
Nota – Referências e citações entre comas respeitam a grafia
das edições consultadas.
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