terça-feira, 4 de março de 2014


004. VIANA EM CAMILO [03a]
          [A Bruxa de Monte Córdova (1867)]


Regresso, neste post, a A Bruxa de Monte Córdova, de Camilo, depois de o ter feito já AQUI, a apropósito das referências que o Escritor faz, neste romance, a Viana e à Senhora da Agonia.
Desta vez, porém, as referências dizem respeito a Pita Bezerra, personagem secundária no enredo da narrativa, mas sinistra figura do miguelismo. O romancista nada nos diz sobre a sua naturalidade, talvez por simpatia para com esta cidade e sua gente, mas José Rosa de Araújo, referindo-se ao mesmo indivíduo, diz que Camilo «nos dá uma versão realista, pavorosa, do tumulto popular que assassinou barbaramente, nas ruas do Porto o coronel Pita Bezerra, nascido naquele solar de Darque, há muito alianado [sic] sito mesmo à beira do rio [Lima]». [Araújo, 1980: 3]
De facto, assim aconteceu, embora a realidade romanescamente ficcionada não seja o relato da realidade histórica. O bárbaro episódio situa-se num tempo de guerra civil, de permanente instabilidade política e convulsão social. Mas Camilo também nos mostra, antes da referida vindicta popular, exemplos de como o nobre Pita Bezerra despoticamente terá atuado, enquanto oficial do exército miguelista, sobre a população civil que não se declarasse adepta e seguidora das ideias absolutistas (também ditas realistas, ao tempo) e/ou não contribuísse, com tudo o que tivesse, para a defesa do «trono e do altar», simbolizada na figura de D. Miguel. O povo, por isso, logo que pôde, justiça fez pelas próprias mãos. Apesar dos veementes apelos em contrário, arriscadamente feitos por uma das persongens mais simpáticas de A Bruxa, o solitário, clarividente, pacífico e humano velho frade beneditino Jacinto de Deus.

A primeira referência encontra-se na passagem que, depois de brevíssima contextualização, transcrevo a seguir.
Aos 80 anos, despedido do convento de S. João de Alpendorada (Marco de Canaveses), por se recusar a pegar em armas, e, por isso, suspeito de simpatizar com os malhados (assim eram chamados, ao tempo, os adeptos do liberalismo), fr. Jacinto de Deus, vai a caminho da sua aldeia, «vizinha do Arco de Baulhe, em terras de Basto». É interrompido, a dado passo, por tropas liberais, insultado por alguns soldados e agredido por populares, sendo de imediato conduzido a Penafiel e daqui ao Porto. Sumariamente interrogado pelo tenente-general Stubbs – «velho asneirão, que tem nas veias agua chilre quando as não tem a estoirar de vinho do Porto», segundo um sargento –, o oficial inglês não deu a menor importância ao velho frade e mandou-o embora.
Fr. Jacinto regressa à sua aldeia, acompanhado por dois sobrinhos, a cujo pai, entretanto, tinha pedido auxílio, «desviando-se já de um, já de outro bando» dos contendores. Chegado a S. Pedro de Alvite (Cabeceiras de Basto), procura e encontra o irmão mais velho de Tomás de Aquino. Este é aquele ex-frade que, enquanto conventual se chamou Tomás de S. Plácido, de quem já falei AQUI. Ex-frade que, entretanto, acabara de morrer, em 5 de setembro de 1833, na guerra de Lisboa, lutando pela causa de D. Maria II. É durante a conversa que trava com o irmão mais velho deste liberal ex-frade que fr. Jacinto de Deus encontra, pela primeira vez, na narrativa, Pita Bezerra.

Desceu o morgado ao terreiro da casa, reconheceu o amigo de seu irmão e disse-lhe sacudidamente.
– O doido lá o atravessaram as balas em Lisboa. Foi a deshonra da nossa casa. O pae morreu na defeza do altar, e o filho acabou na fileira dos atheus.
– Seu pae defendia o altar? – perguntou frei Jacintho.
– Pois não sabe que os liberaes de Fafe o mataram no Ladario? Vossa paternidade está-se a fazer parvo!
– Constou-me que o mataram; mas disseram-me que o senhor Simeão d’Aquino andava agarrando homisiados para os entregar áquelle grande ministro chamado João Branco, o qual decerto não era ministro do altar.
– Podéra não! – tornou o irmão de Thomaz com certo jubilo de ver já notoria a dedicação de seu pae. – E vossa paternidade, se podesse, não os agarrava tambem?
– Agarrava para escondel-os do pae de vossa senhoria.
– Que tal está o patife do frade! – exclamou um official de grandes barbas, arrastando a espada, e coriscando dos olhos ascuas de cólera.
Frei Jacintho de Deus encarou serenamente no temeroso homem, deante do qual todos se affastavam e descobriam, e disse:
– É vossa senhoria o senhor Pitta Bezerra, se me não engano.
– Sou.
– Conheci-o muito novo e docil menino em casa de seu tio o senhor capitão mór de Cabeceiras Serafim Pacheco dos Anjos.
– E d’hai? – bradou o celebrado carnifece. – Cuida que não o mando despir e chibatar, seu indigno frade, que ousa dizer que escondia os malhados do justo castigo que os espera?
– Apoiado! – exclamou o irmão de Thomaz de Aquino.
– Eu lhe direi, senhor – redarguiu o monge –, esconderia da ira inconsiderada do seu inimigo todo homem em afflição; esconderia no meu habito o senhor Pitta Bezerra, se amanhã os seus inimigos viessem bradando que era justa vingança matal-o. A todos esconderia, a mim é que me não escondo dos homens; esconder-me-ia só de Deus, se podesse. Póde pois vossa senhoria mandar-me chibatar, se n’isso lhe vae satisfação.
– Não m’o peça segunda vez! – bradou o capitão de infantaria 13. – Cadeia com elle e com estes que o acompanham!
– Estes são innocentes, que ainda não proferiram palavra, senhor Pitta Bezerra! – disse o monge. – Parece-me justo que os não prendam.
– Não me pregue lerias! Ferros com eles, antes que os mande passar pelas armas!...
Alguns milicianos de Guimarães rodearam o frade e os sobrinhos com ar de constrangidos. Pitta Bezerra, como os visse froixos na diligência, bradou:
– Querem ir todos a pontapés?
Os presos entraram ao anoitecer na cadeia das Pereiras. Os mancebos choravam e o tio frade dizia-lhes:
– Então, rapazes! Chorar!? que pusillanimes sois!... Não vos envergonham os meus oitenta anos! Eu tambem nunca pernoitei entre estes ferros; mas, se me não engano, o somno das consciências quietas não estrema o carcere nu, de uma boa alcova cortinada. Se Deus vos deparar uma cama, muitas graças lhe daremos. [Branco, 1867: 129-131]

E quem foi, então – perguntar-se-á – esse celebrado carnífice Pita Bezerra?
A Enciclopédio Portuguesa e Brasileira de Cultura (vol. XXII, pp. 16-17), traz o seguinte registo biográfico de João Pita Bezerra:

Oficial do Exército, n[asceu] em Viana do Castelo em 10-XII-1792, m[orreu] tràgicamente no Porto, em 20-III-1835, quando tinha ainda a patente de capitão. Descendente de família nobre de Darque, era partidário acérrimo do miguelismo. No decurso das lutas civis, nos anos de 1828 a 1832, salientou-se, principalmente no Porto, em perseguições, tortura e vexames em plena rua, quer nos assaltos a domicílios, quer no comando da cadeia, que por vezes assumia. Quando o seu partido foi vencido, fugiu para Melgaço, andou a monte e, por fim, refugiou-se na sua residência em Darque, onde foi preso em Agosto de 1834. Durante a marcha para Viana do Castelo foi defendido com muito custo pela escolta, constituída por vinte soldados de infantaria, contra a multidão que o apupava. Os mesmos riscos teve de suportar quando o levaram pela estrada, de Viana para o castelo da Foz do Douro. Não foi abrangido pela amnistia de 17-V-1834 e em Jan[eiro] de 1835 foi condenado a prisão. Pouco depois era denunciado, por uma carta que remetera para Melgaço, como implicado numa conjura miguelista. Novamente processado, quando saía, escoltado, da viela do Correio, de regresso do tribunal, onde fora interrogado por um juiz, para a cadeia, uma multidão enfurecida subjugou os soldados e matou o preso, cujo cadáver foi depois arrastado pelas ruas e lançado ao Douro.

Segundo se leu acima, Rosa de Araújo diz que este Pita Bezerra nasceu num solar de Darque, situado junto do rio Lima. Que memórias haverá, ainda em Darque, desse oficial miguelista e da existência e estado do referido solar? O primeiro resultado é esta imagem:

(Fotografia de Gualberto Boa-Morte, em Oliveira, 2011: 115)
Agradeço ao Salvador Vieira a autorização da reprodução da fotografia.

Este bloco de casas, situado junto do rio Lima, terá pertencido aos Pita Bezzera. Sobre esta família nobre, ver Norton, 1983. A casa mais alta, à esquerda, parcialmente reproduzida na aguarela, terá sido propriedade, habitação e refúgio do caudilho miguelista. Vou colher, todavia, mais informações, de que darei conta no próximo post. Porque falta apresentar, ainda, o episódio onde Camilo, n’A Bruxa de Monte Córdova, narra o fim trágico deste Pita Bezerra.

Leituras
ARAÚJO, José Rosa de, 1980: «Camilo e Ponte de Lima». Limiana, n.º 35. Ponte de Lima: jornal Cardeal Saraiva, de 29-02.
BRANCO, 1867: A Bruxa de Monte-Cordova. Lisboa: Livraria de Campos Junior.
NORTON, Manuel Artur, 1983: «Carta de brasão de armas LV (Os Pitas de Darque)». Cadernos Vianenses, Tomo VII . Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 42-56. Também AQUI.
OLIVEIRA, Madalena, 2011: Salvador Vieira – Traços do Homem e do Artista. (Pref. de Maurício de Sousa). S/L: ALERT Life Sciences Computing.
RODRIGUES, David F., 2013: «Viana & Camilo – Presenças e situações». A Falar de Viana. Viana do Castelo: Vianfestas; pp. 207-213.
---------------, 2013: «Viana em Camilo [01]», em http://vianacamilo.blogspot.pt/2014/02/002.html

Nota – Referências e citações entre comas respeitam a grafia das edições consultadas.

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