005. VIANA EM CAMILO [03b]
[A Bruxa de Monte Córdova (1867)]
Este post é continuação do anterior (cf.
AQUI). Apresento
o relato ficcionado que Camilo faz, em A
Bruxa de Monte Córdova, do assassínio violento do sanguinário miguelista João
Pita Bezerra, natural de Darque, por uma furiosa chusma de portuenses. É o que se (re)lerá a seguir, depois de prévia
e breve contextualização.
Com a morte em combate do liberal
Tomás de Aquino, companheiro de Angélica Florinda, de quem tinha um filho, o octagenário
fr. Jacinto de Deus transforma-se numa espécie de pai adotivo da criança (a
quem tinham dado o nome de Jacinto de Deus, em homenagem ao frade amigo) e em
protetor da mãe solteira. O monge oferece a Angélica abrigo em suas propriedades.
Ela, porém, preferindo recolher-se a um convento, a criação do menino é
entregue a uma ama – a senhora Maria, mulher de Bento Gomes, camarada de armas de
Tomás de Aquino – a quem o frade paga uma mesada. Para a mãe poder visitar o
filho, fr. Jacinto aluga um sótão próximo do convento. Um dia, ao revisitar a ama
e o afilhado, a senhora Maria (cujo léxico pessoal o Escritor reproduz, por
vezes), depois de acusar a berzabum da
beata Angélica de deixar de visitar o filho, diz ao velho frade:
– Olhe
lá, senhor frei Jacintro! – disse a ama – não sabe que prenderam o Pitta
Bezerra? Aquelle grande carrasco?
–
Prenderam?
– Mas o
povo está na cordoaria á espera que elle saia do tribunal da Rua da Fabreca
para o matar. Eu, se não tivesse esta criança, também lá ia cortar-lhe uma
orelha.
– Que
mal fez o Pitta Bezerra á senhora Maria? – perguntou o frade.
–
Diabos o arrastem, que nunca o vi; mas matou ahi gente nesse Porto que não lhe
sei dizer. Eu disse a duas visinhas que lá foram: ó mulheres, se me trazeis a
ponta do nariz desse ladrão pago-vos duas canadas de vinho maduro, e mais ele
está pelas portas da morte.
– Essa
sede de sangue é impropria duma mulher, senhora Maria...
– Podéra
não! tomára eu vêr todos os caipiras picados como çabolla de estrugido.
O frade
ia dizendo entre si: «O sexo fraco, do qual dizem que a brandura da alma é o
seu particular condão!...»
Encaminhou-se
frei Jacintho de Deus á rua da Fabrica. Quando chegou á rua de Santo Antonio,
viu grande chusma de povo a desbordar da viella do Correio, urrando «morras» e
floreando no ar espadas e chuças. Ao convisinhar da revoluteante mó de mulheres,
maltrapidos e garotos ouviu que os gritos diziam: «Morra o Pitta Bezerra.»
Perguntou onde estava ele e disseram-lhe que estava a ser julgado e que o
esperavam para o matar.
– Não
seria melhor que o deixasseis ser castigado pelas leis?
– Quais
leis nem qual diabo! – bradou um soldado dos batalhões fixos, sacudindo uma
espada curta. – A lei é o povo! Será você algum burro da panela d’elle?
– Não
sou, camarada – respondeu serenamente o frade – eu sou um dos que ele meteu na
cadeia.
– E
então está aí a dar aos taleigos a favor do malvado que tirou um pedaço de nadega
a meu irmão, salvo tal lugar, aqui! Ora meu velhote, não se vá fazer fino com
palavriado lá para o meio do povo, que lhe vão à pavana! Tome o meu conselho...
Frei
Jacintho muito cosido com a parede, pedindo licenças com a maior humildade,
chegou até à porta do tribunal, a tempo que Pitta Bezerra descia as escadas
entre soldados.
Ao
verem-no, centuplicaram-se os gritos. Os silvos das mulheres, como os da cobra cascavel,
sobrelevavam os rugidos dos tigres, que nada menos se figuravam aquelles homens
recurvando as garras para o sevo da carniça.
Pitta
Bezerra, já condenado á morte, chegou ao limiar do pateo com o sangue já represado
no coração. Encostado ao alisar da porta estava o frade. O sentenciado, que ali
chegara com parecenças de cadaver, encarou no homem da batina.
– Sou
aquelle pobre frade, senhor Pitta Bezerra... – disse frei Jacintho de Deus; e,
assomando no umbral da porta, disse voltado para o povo:
– Não
queiraes manchar vossas mãos puras com o sangue do criminoso. Povo valente,
povo magnanimo! vós déstes á justiça a victoria; quebrastes as algemas aos
legisladores; deixae agora á justiça a missão de vos vingar.
– Que
diz o asno? – bradou uma regateira.
– Fóra
burro!... – conglobaram-se muitos gritos.
– Quem vos
falla – tornou o frade imperturbavel – é um dos homens inoffensivos que este
cruel lançou em ferros. Mas não permitta Deus, nem a liberdade, que vossos
braços conquistaram, que eu vos incite a matar este criminoso sem que todas as
suas victimas o possam ver no patibulo. Sabeis que se mata um homem num
momento? Que é pequeno castigo para este matador tirar-lhe num instante a vida,
quando ele tantas arrancou vagarosamente com demorados tormentos? Não querereis
antes vêl-o caminhar do oratorio á forca? Cidadãos! deixae-o entrar com vida na
cadeia; e não lhe deis o praser de o matar n’um curto momento; porque elle
decerto antes quer a morte repentina com que o ameaçaeees do que a lenta agonia
do oratorio e o espectaculo da infamante morte. Quantos parentes vossos cairam
nos baluartes d’esta cidade acutilados ou varados de pelouros? Morreram, e
contudo eram honrados defensores d’uma causa justa! E quereis vós, imprudentes,
que este homem acabe como acabaram os valentes que choraes? Quereis que elle
não tenha paroxismos mais duradouros? Quereis que elle d’aqui a cinco minutos
esteja insensível aos castigos que devem prolongar-se até que o peso do
carrasco lhe aperte a garganta? Cidadãos, vêde o que fazeis! A vida d’este
homem deve ser cortada fio a fio. Se o mataes d’um golpe, podereis dizer que
não vingastes as victimas de Pitta Bezerra.
–
Apoiado! – conclamaram muitas vozes. – Apoiado!, deixal-o ir! Não se mate! Diz
bem o padre: hade morrer aos pedaços! ... Ferros com elle! Deixem passar,
mulheres!
A escolta
abriu passagem. Pitta Bezerra ao perpassar pelo padre baixou-lhe um olhar de
implorativa gratidão. Frei Jacintho não o encarou.
Vinte
passos andados, a turba que sobreveio do lado dos Clerigos, e não tinha ouvido
a allocução triumphante do frade, rompeu de chofre e ferro apontado contra a
escolta, arrancou do preso, acutilou-o, espedaçou-lhe o rosto, estrangulou-o
com um grosso sparto, arrastou-o esphacellado pelas ruas, e levou-lhe o
arcaboiço meio escamado á beira do Douro, onde o arrojou, urrando uma prolongada
dissonância de gritos exultantes, vociferados pelos mesmos que tinham cuspido affrontas
às cabeças cravadas nos espeques da Praça Nova em 1829.
Era o
mesmo povo. [Branco,
1867: 142-145]
E que mais se sabe deste desgraçado,
além do que nos conta Camilo e do que se disse no final do post anterior?
Pouco mais. O jornalista Germano
Silva [2007], em resposta a carta de leitor do Jornal de Notícias, interessado também na releitura de A Bruxa, escreve, baseado em «crónica da
época», que Pita Bezerra foi «“o mais audaz de
quantos caceteiros miguelistas enxamearam a esse tempo a velha cidade”». E
acrescenta, citando:
«Consta da
citada crónica que “todas as noites descia ao Largo de S. Domingos acompanhado
de uma malta ignóbil e daí para cima o sanguinolento quadrilheiro espancava ou
mandava espancar quantas pessoas encontrava e que, por não serem suas
conhecidas, ele de imediato tomava como sendo hostis à causa de D. Miguel”.
Conta mais
o cronista “… Desgraçado que não fosse das suas relações ou não gritasse ao
avistar a malta do Pita Bezerra, viva o senhor D. Miguel e morram os constitucionais,
podia contar com a cabeça aberta e as costelas amolgadas porque o caceteiro,
sem dar tempo a justificação alguma, cuspia nas mãos, levantava o cacete e gritava
para os seus apaniguados, vamos a este rapazes! E era pancadaria de criar bicho…”
Caso para
dizer que Pita Bezerra fez a cama onde depois o deitaram…»
E quanto ao tal solar de Darque, junto do rio Lima, propriedade de Pita Bezerra?
Confirma-se a hipótese formulada no post anterior. A casa mais elevada (1),
parcialmente reproduzida na aguareal do pintor Salvador Vieira [cf. Oliveira, 2011: 115], pertenceu à
família dos Pitas de Darque. Sobre o portão de entrada da quinta, encontra-se a
pedra de armas (2), as mesmas que se encontram na respetiva carta de brasão (3),
estudada Manuel Artur Norton [1983].
Talvez não seja descabido dizer, antes
de terminar as referências de Camilo a Viana, em A Bruxa de Monte Córdova, que este romance é um autêntico drama,
uma tragédia, pessoal – ao nível dos afetos – por um lado, e social – a nível
religioso e político ou político-religioso, se preferirem – por outro. É uma
inexorável denúncia, uma implacável acusação, uma inclemente condenação de todos os
fundamentalismos (para utilizar um termo atual). Como sintetiza Alexandre
Cabral, na «Nota introdutória» à edição de 1982, encontra-se, «n’A Bruxa de Monte de Córdova, de forma lapidar, a influência que exerceu
na carnificina [guerra civil de 1832-34, sobretudo] a pregação fradesca [convém excluir fr. Jacinto de Deus], a intolerância daqueles que queriam impor
a verdade do seu credo pelos infalíveis e repugnantes meios da forca, das
perseguições e ódios políticos, chegando-se já nesse tempo, á proclamação do
execrando princípio do “quem não é por nós é contra nós”.»
E, dentro do mesmo espírito de
análise, observa ainda: «A luta fraticida
estende-se de norte a sul do país, empapando a terra portuguesa do generoso
sangue de seus filhos. Assiste-se às perseguições, às vinganças e às sevícias
das parcialidades sobre os adversários ideológicos. Porque – conclui – é disso efectivamente que se trata neste
romance: do confronto entre duas ideologias.» [CABRAL, 1982]
Por tudo isto e sobretudo pelo muito
que este romance encerra e a sua leitura revela, A Bruxa de Monte Córdova é uma das obras de Camilo a ler e/ou a
reler. Até pelos incómodos que poderá, ainda hoje, provocar. Uma obra, por
isso, também a estudar. Criticamente, como sempre deve ser.
Leituras
ARAÚJO,
José Rosa de, 1980: «Camilo e Ponte de Lima». Limiana, n.º 35. Ponte de Lima: jornal Cardeal Saraiva, de 29-02.
BRANCO,
1867: A Bruxa de Monte-Cordova.
Lisboa: Livraria de Campos Junior.
-----------,
1982: A Bruxa de Monte Córdova. Lisboa:
Círculo de Leitores.
CABRAL,
1982: «Nota introdutória», em BRANCO, 1982.
-----------,
1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco.
Lisboa: Caminho.
NORTON,
Manuel Artur, 1983: «Carta de brasão de armas LV (Os Pitas de Darque)». Cadernos Vianenses, Tomo VII . Viana do
Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 42-56. Também AQUI.
OLIVEIRA,
Madalena, 2011: Salvador Vieira – Traços
do Homem e do Artista. (Pref. de Maurício de Sousa). S/L: ALERT Life
Sciences Computing.
RODRIGUES,
David F., 2013: «Viana & Camilo – Presenças e situações». A Falar de Viana. Viana do Castelo:
Vianfestas; pp. 207-213.
---------------,
2013: «Viana em Camilo», em http://vianacamilo.blogspot.pt/
Nota – Referências e citações entre comas respeitam a grafia
das edições consultadas.
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