sexta-feira, 7 de março de 2014


005. VIANA EM CAMILO [03b]
          [A Bruxa de Monte Córdova (1867)]


Este post é continuação do anterior (cf. AQUI). Apresento o relato ficcionado que Camilo faz, em A Bruxa de Monte Córdova, do assassínio violento do sanguinário miguelista João Pita Bezerra, natural de Darque, por uma furiosa chusma de portuenses. É o que se (re)lerá a seguir, depois de prévia e breve contextualização.
Com a morte em combate do liberal Tomás de Aquino, companheiro de Angélica Florinda, de quem tinha um filho, o octagenário fr. Jacinto de Deus transforma-se numa espécie de pai adotivo da criança (a quem tinham dado o nome de Jacinto de Deus, em homenagem ao frade amigo) e em protetor da mãe solteira. O monge oferece a Angélica abrigo em suas propriedades. Ela, porém, preferindo recolher-se a um convento, a criação do menino é entregue a uma ama – a senhora Maria, mulher de Bento Gomes, camarada de armas de Tomás de Aquino – a quem o frade paga uma mesada. Para a mãe poder visitar o filho, fr. Jacinto aluga um sótão próximo do convento. Um dia, ao revisitar a ama e o afilhado, a senhora Maria (cujo léxico pessoal o Escritor reproduz, por vezes), depois de acusar a berzabum da beata Angélica de deixar de visitar o filho, diz ao velho frade:

– Olhe lá, senhor frei Jacintro! – disse a ama – não sabe que prenderam o Pitta Bezerra? Aquelle grande carrasco?
– Prenderam?
– Mas o povo está na cordoaria á espera que elle saia do tribunal da Rua da Fabreca para o matar. Eu, se não tivesse esta criança, também lá ia cortar-lhe uma orelha.
– Que mal fez o Pitta Bezerra á senhora Maria? – perguntou o frade.
– Diabos o arrastem, que nunca o vi; mas matou ahi gente nesse Porto que não lhe sei dizer. Eu disse a duas visinhas que lá foram: ó mulheres, se me trazeis a ponta do nariz desse ladrão pago-vos duas canadas de vinho maduro, e mais ele está pelas portas da morte.
– Essa sede de sangue é impropria duma mulher, senhora Maria...
– Podéra não! tomára eu vêr todos os caipiras picados como çabolla de estrugido.
O frade ia dizendo entre si: «O sexo fraco, do qual dizem que a brandura da alma é o seu particular condão!...»
Encaminhou-se frei Jacintho de Deus á rua da Fabrica. Quando chegou á rua de Santo Antonio, viu grande chusma de povo a desbordar da viella do Correio, urrando «morras» e floreando no ar espadas e chuças. Ao convisinhar da revoluteante mó de mulheres, maltrapidos e garotos ouviu que os gritos diziam: «Morra o Pitta Bezerra.» Perguntou onde estava ele e disseram-lhe que estava a ser julgado e que o esperavam para o matar.
– Não seria melhor que o deixasseis ser castigado pelas leis?
– Quais leis nem qual diabo! – bradou um soldado dos batalhões fixos, sacudindo uma espada curta. – A lei é o povo! Será você algum burro da panela d’elle?
– Não sou, camarada – respondeu serenamente o frade – eu sou um dos que ele meteu na cadeia.
– E então está aí a dar aos taleigos a favor do malvado que tirou um pedaço de nadega a meu irmão, salvo tal lugar, aqui! Ora meu velhote, não se vá fazer fino com palavriado lá para o meio do povo, que lhe vão à pavana! Tome o meu conselho...
Frei Jacintho muito cosido com a parede, pedindo licenças com a maior humildade, chegou até à porta do tribunal, a tempo que Pitta Bezerra descia as escadas entre soldados.
Ao verem-no, centuplicaram-se os gritos. Os silvos das mulheres, como os da cobra cascavel, sobrelevavam os rugidos dos tigres, que nada menos se figuravam aquelles homens recurvando as garras para o sevo da carniça.
Pitta Bezerra, já condenado á morte, chegou ao limiar do pateo com o sangue já represado no coração. Encostado ao alisar da porta estava o frade. O sentenciado, que ali chegara com parecenças de cadaver, encarou no homem da batina.
– Sou aquelle pobre frade, senhor Pitta Bezerra... – disse frei Jacintho de Deus; e, assomando no umbral da porta, disse voltado para o povo:
– Não queiraes manchar vossas mãos puras com o sangue do criminoso. Povo valente, povo magnanimo! vós déstes á justiça a victoria; quebrastes as algemas aos legisladores; deixae agora á justiça a missão de vos vingar.
– Que diz o asno? – bradou uma regateira.
– Fóra burro!... – conglobaram-se muitos gritos.
– Quem vos falla – tornou o frade imperturbavel – é um dos homens inoffensivos que este cruel lançou em ferros. Mas não permitta Deus, nem a liberdade, que vossos braços conquistaram, que eu vos incite a matar este criminoso sem que todas as suas victimas o possam ver no patibulo. Sabeis que se mata um homem num momento? Que é pequeno castigo para este matador tirar-lhe num instante a vida, quando ele tantas arrancou vagarosamente com demorados tormentos? Não querereis antes vêl-o caminhar do oratorio á forca? Cidadãos! deixae-o entrar com vida na cadeia; e não lhe deis o praser de o matar n’um curto momento; porque elle decerto antes quer a morte repentina com que o ameaçaeees do que a lenta agonia do oratorio e o espectaculo da infamante morte. Quantos parentes vossos cairam nos baluartes d’esta cidade acutilados ou varados de pelouros? Morreram, e contudo eram honrados defensores d’uma causa justa! E quereis vós, imprudentes, que este homem acabe como acabaram os valentes que choraes? Quereis que elle não tenha paroxismos mais duradouros? Quereis que elle d’aqui a cinco minutos esteja insensível aos castigos que devem prolongar-se até que o peso do carrasco lhe aperte a garganta? Cidadãos, vêde o que fazeis! A vida d’este homem deve ser cortada fio a fio. Se o mataes d’um golpe, podereis dizer que não vingastes as victimas de Pitta Bezerra.
– Apoiado! – conclamaram muitas vozes. – Apoiado!, deixal-o ir! Não se mate! Diz bem o padre: hade morrer aos pedaços! ... Ferros com elle! Deixem passar, mulheres!
A escolta abriu passagem. Pitta Bezerra ao perpassar pelo padre baixou-lhe um olhar de implorativa gratidão. Frei Jacintho não o encarou.
Vinte passos andados, a turba que sobreveio do lado dos Clerigos, e não tinha ouvido a allocução triumphante do frade, rompeu de chofre e ferro apontado contra a escolta, arrancou do preso, acutilou-o, espedaçou-lhe o rosto, estrangulou-o com um grosso sparto, arrastou-o esphacellado pelas ruas, e levou-lhe o arcaboiço meio escamado á beira do Douro, onde o arrojou, urrando uma prolongada dissonância de gritos exultantes, vociferados pelos mesmos que tinham cuspido affrontas às cabeças cravadas nos espeques da Praça Nova em 1829.
Era o mesmo povo. [Branco, 1867: 142-145]

E que mais se sabe deste desgraçado, além do que nos conta Camilo e do que se disse no final do post anterior?
Pouco mais. O jornalista Germano Silva [2007], em resposta a carta de leitor do Jornal de Notícias, interessado também na releitura de A Bruxa, escreve, baseado em «crónica da época», que Pita Bezerra foi «“o mais audaz de quantos caceteiros miguelistas enxamearam a esse tempo a velha cidade”». E acrescenta, citando:
«Consta da citada crónica que “todas as noites descia ao Largo de S. Domingos acompanhado de uma malta ignóbil e daí para cima o sanguinolento quadrilheiro espancava ou mandava espancar quantas pessoas encontrava e que, por não serem suas conhecidas, ele de imediato tomava como sendo hostis à causa de D. Miguel”.
Conta mais o cronista “… Desgraçado que não fosse das suas relações ou não gritasse ao avistar a malta do Pita Bezerra, viva o senhor D. Miguel e morram os constitucionais, podia contar com a cabeça aberta e as costelas amolgadas porque o caceteiro, sem dar tempo a justificação alguma, cuspia nas mãos, levantava o cacete e gritava para os seus apaniguados, vamos a este rapazes! E era pancadaria de criar bicho…”
Caso para dizer que Pita Bezerra fez a cama onde depois o deitaram…»

E quanto ao tal solar de Darque, junto do rio Lima, propriedade de Pita Bezerra?


Confirma-se a hipótese formulada no post anterior. A casa mais elevada (1), parcialmente reproduzida na aguareal do pintor Salvador Vieira [cf. Oliveira, 2011: 115], pertenceu à família dos Pitas de Darque. Sobre o portão de entrada da quinta, encontra-se a pedra de armas (2), as mesmas que se encontram na respetiva carta de brasão (3), estudada Manuel Artur Norton [1983].

Talvez não seja descabido dizer, antes de terminar as referências de Camilo a Viana, em A Bruxa de Monte Córdova, que este romance é um autêntico drama, uma tragédia, pessoal – ao nível dos afetos – por um lado, e social – a nível religioso e político ou político-religioso, se preferirem – por outro. É uma inexorável denúncia, uma implacável acusação, uma  inclemente condenação de todos os fundamentalismos (para utilizar um termo atual). Como sintetiza Alexandre Cabral, na «Nota introdutória» à edição de 1982, encontra-se, «n’A Bruxa de Monte de Córdova, de forma lapidar, a influência que exerceu na carnificina [guerra civil de 1832-34, sobretudo] a pregação fradesca [convém excluir fr. Jacinto de Deus], a intolerância daqueles que queriam impor a verdade do seu credo pelos infalíveis e repugnantes meios da forca, das perseguições e ódios políticos, chegando-se já nesse tempo, á proclamação do execrando princípio do “quem não é por nós é contra nós”.»
E, dentro do mesmo espírito de análise, observa ainda: «A luta fraticida estende-se de norte a sul do país, empapando a terra portuguesa do generoso sangue de seus filhos. Assiste-se às perseguições, às vinganças e às sevícias das parcialidades sobre os adversários ideológicos. Porque – conclui – é disso efectivamente que se trata neste romance: do confronto entre duas ideologias[CABRAL, 1982]
Por tudo isto e sobretudo pelo muito que este romance encerra e a sua leitura revela, A Bruxa de Monte Córdova é uma das obras de Camilo a ler e/ou a reler. Até pelos incómodos que poderá, ainda hoje, provocar. Uma obra, por isso, também a estudar. Criticamente, como sempre deve ser.

Leituras

ARAÚJO, José Rosa de, 1980: «Camilo e Ponte de Lima». Limiana, n.º 35. Ponte de Lima: jornal Cardeal Saraiva, de 29-02.
BRANCO, 1867: A Bruxa de Monte-Cordova. Lisboa: Livraria de Campos Junior.
-----------, 1982: A Bruxa de Monte Córdova. Lisboa: Círculo de Leitores.
CABRAL, 1982: «Nota introdutória», em BRANCO, 1982.
-----------, 1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho.
NORTON, Manuel Artur, 1983: «Carta de brasão de armas LV (Os Pitas de Darque)». Cadernos Vianenses, Tomo VII . Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 42-56. Também AQUI.
OLIVEIRA, Madalena, 2011: Salvador Vieira – Traços do Homem e do Artista. (Pref. de Maurício de Sousa). S/L: ALERT Life Sciences Computing.
RODRIGUES, David F., 2013: «Viana & Camilo – Presenças e situações». A Falar de Viana. Viana do Castelo: Vianfestas; pp. 207-213.
---------------, 2013: «Viana em Camilo», em http://vianacamilo.blogspot.pt/
SILVA, Germano, 2007: «A Rua de Santo António e o célebre Pita Bezerra». Jornal de Notícias, 29-07.

Nota – Referências e citações entre comas respeitam a grafia das edições consultadas.

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