Cláudio Basto e Camilo
[Continuação]
03. Três cartas de Camilo
Entre «Notas Camilianas – I»1
e «Notas Camilianas – II»2, Cláudio Basto3 publicou, em
1917, Três cartas de Camilo4,
opúsculo de 14 páginas, com a chancela da Lusa,
revista de que o médico, professor e investigador vianês era editor, diretor e,
muito provavelmente, proprietário5.
O autor mostra, em zincogravura, depois
de uma «notícia informativa», três cartas que Camilo havia dirigido a Henrique
Guilherme Tomás Branco6. Cada autógrafo é precedido de uma apresentação
sumária, seguido da sua transcrição integral, em letra de imprensa, respeitando
a grafia e a disposição do texto manuscrito. Cláudio Basto faz, depois de cada um
destes documentos, um breve comentário.
Neste apontamento, reproduz-se, apenas,
a referida «notícia». Respeitar-se-á a grafia inscrita no «folheto» - designação
dada por Cláudio Basto a esta sua publicação. Todavia, notas e referências, e bibliografia receberão grafia atualizada. E o
texto bastiano segue aqui, para melhor se distinguir, em tipo de letra «segoe
print».
03.1. Três cartas de Camilo: «notícia informativa»7
Cláudio Basto, nesta sequência
discursivo-textual do «folheto», situa a origem e a propriedade efetiva destes documentos
camilianos. A propósito, expõe e defende a opinião, de natureza ética e sociocultural, contra a publicação, sobretudo se acrítica, de cartas inteiras e/ou trechos
epistolares que possam «apequenar» ou «ferir» a «grandeza» e a «memória» de
Camilo, bem como de outras «personalidades ilustres» das letras portuguesas.
Assim:
A publicação das três cartas de Camilo
que nêste folheto se incluem, faço-a por gentil assentimento do Sr.
Tenente-coronel de artelharia Alfredo Ernesto Dias Branco, a cujo Pai –
Henrique Guilherme Tomás Branco, que foi Director das Obras-públicas do Pôrto –
o autor das NOVELAS DO MINHO as
escreveu. Muitas outras cartas Camilo dirigiu a êste seu grande amigo, mas
delas não restam, pelo menos que o Sr. Tenente-coronel Branco saiba, mais do
que as três que adeante se reproduzem.
São três cartas dignas de registo. Não
teem elas nada que possa ferir a memória do Romancista, nada que aos olhos de
todos se não possa expor, ‒ antes
documentam brilhantemente, além do cuidado investigador do «literato», facêtas
delicadas do «homem».
A conhecida sanha de apequenar o que é
grande não tem poupado os escritores, como julgo ser de todos os tempos e
lugares, - mas Camilo tem sido revolvido de uma forma particularmente bruta,
quero crer que as mais das vezes impensada.
Afigura-se-me criminosamente abusivo
assoalhar por miúdo a vida íntima de quem quer que seja, guizalhando, ante a
curiosidade de um público na grande maioria alarve, além de infortúnios
melindrosos em que dói tocar, deslizes e anormalidades, que nos «grandes»
homens são em geral «pequenezes» que os «pequenos» não sabem compreender. Há
coisas, saídas a lume, que a ninguém e a nada aproveitam; há outras que teem,
quando muito, valor para eruditos que pretendam traçar o perfil completo de uma
individualidade: publicar aquelas, sendo amesquinhantes, é uma superfluidade
estúpida, e estoutras não deveriam sair nunca para o giro deprimente de todas
as mesas e balcões. Os críticos, compulsando, analisando e interpretando
elementos de tal ordem, delineariam os seus estudos inteligentes, de maneira
que aos olhos ignaros, ingénuos ou preguiçosos se erguessem as personalidades
ilustres em linhas vigorosas, insusceptíveis de injustas deformações, filhas da
preguiça, da ingenuidade ou da ignorância a mirarem pelo primeiro prisma que
deante lhes seja pôsto imprudentemente.
No tocante a depoimentos epistolares,
há ainda a considerar outro aspecto.
A carta, se muitas vezes é um bom
testemunho do sentir e pensar de quem na escreveu, também muitas vezes não é
mais do que o reflexo de «estados ocasionais», não sendo lícito deduzir daí o
«mundo», para assim dizer, «normal», do autor.
Mais ainda:
Escrita sem o intuito nem a suspeita de
publicidade, a carta pode revelar sem dúvida o escritor tal qual, colhido em
flagrante, sem disfarces, - mas a mesma não suposição de publicidade, por outro
lado, também pode levar o escritor a propositada- ou descuidosamente falsear o
próprio pensamento e sentir.
Assim, a carta pode ser um documento de
opiniões e sentimentos da «personalidade» que a traçou ou de «momentâneos
estados» dessa personalidade; tanto num como noutro caso há se quiserem
sinceridade, porque na carta fica a expressão real do que se pensou e sentiu,
mas há a diferençar o que é «ocasional», «passageiro», de o que é «fixo»,
«assente». E pode ser ainda, a carta, um anódino produto sem qualquer intenção,
sem raízes no cérebro e na alma do escritor: uma insignificante
superficialidade bem ou mal humorada, equivalente a cavaqueios sem maldade,
essencialmente inofensivos, de mesa de botequim aliteratado ou aliteratada
porta de livraria, tantas vezes até contrários aos verdadeiros sentimentos e
pareceres dos cavaqueadores…
Havendo, portanto, muitos assuntos que,
à primeira vista – e vista de ordinário grossa… -, parecem uma coisa, e, quando
atentamente observados e estudados, se verifica serem outra, - às claras se vê
quam perigoso é deixar «meios» de observação e estudo, ao alcance de quem não
sabe deduzir com justeza «conclusões», sobretudo quando estas podem ensombrar a
memória reluzente de homens insignes.
Ora, pelo que respeita a Camilo,
dispensa-me o Leitor considerações particulares. Das que acima ficam
tracejadas, de um modo geral -, saberá o Leitor fazer as devidas aplicações.
Sómente especificarei que a perseguição epistolar
ao imortal polígrafo chegou ao ponto de se lhe publicarem cartas adulteradas,
havendo, quanto a uma delas (pelo menos), êle próprio recomendado
expressamente, num acertado pressentimento, que lha rasgassem depois de lida,
para que não aparecesse após a sua morte (1).
(1)
A êste propósito, vid. o que deixei escrito na LUSA, I, pág. 13 (n.º 2),
primeiro artigo da série Notas camilianas.
{8}
A edição de Três cartas de Camilo terá sido fortemente criticada por um jornalista,
num periódico lisboeta, não identificados. É de inferir que, face à réplica
publicada na Lusa e, logo depois ou
em simultâneo, no jornal República9
e em separata, Cláudio Basto se tenha sentido deveras ofendido, na sua dignidade
ética e intelectual. O estudioso vianês responde ao «criticador», explicando as razões e os objetivos da edição do «folheto». Rejeita,
ao mesmo tempo, por injustas e levianas, as acusações do «criticador», dirigindo-lhe tratamentos fortemente acrimoniosos. Considera o visado, entre outros epítetos,
um daqueles «que vivem arreatados ao jornaleirismo, saídos do vazadoiro
para onde as letras nacionais exgregam a sua escória.»10 Como
oportunamente se lerá, em 03.5.
Seguir-se-ão, nos três próximos
apontamentos (03.2. a 03.4.), as transcrições integrais de cada uma das três cartas,
na sua reprodução fac-similada (zincogravura), acompanhadas das respetivas
transcrições impressas em letra de forma e dos correspondentes comentários,
segu(i)ndo a leitura do estudioso vianês Cláudio Basto.
Notas
e referências
1 (Re)ler BASTO, 1917 e/ou
AQUI.
2 (Re)ler BASTO, 1918 e/ou
AQUI.
3 Para um resumo biobibliográfico
de Cláudio Basto, (re)ler «0. Apresentação» (AQUI),
onde são indicadas outras referências sobre este médico, professor e
investigador vianês.
4 (Re)ler BASTO, 1917a. O
opúsculo foi publicitado em números da Lusa,
ao preço de 1.200 réis. Os pedidos de aquisição deveriam ser «dirigidos à administração da revista», sita na «Avenida de Camões, 16, Viana do Castelo,
acompanhados da respetiva importância, sem o que não serão [seriam] satisfeitos.»
5 Sobre o fundador,
editor, diretor(es) e colaboradores da revista Lusa, (re)ler VIANA & BARROSO, 2009: 348-349.
6 Breve nota biográfica
sobre Henrique Guilherme Tomás Branco, amigo e contemporâneo de Camilo, ler-se-á
no próximo apontamento (03.2. Carta I).
7 Cláudio
Basto, ao publicitar o opúsculo na Lusa,
refere que a reprodução das três cartas
é acompanhada por «uma notícia elucidativa», designação escolhida, por isso,
para se especificar o título desta subalínea.
{8} (Re)ler BASTO, 1917a:
05-06. Por ser da responsabilidade do autor deste apontamento, e não de Cládio
Basto, o índice da nota foi inscrito entre chavetas.
9 Em BASTO (org.), 1948:
19, lê-se que o mesmo artigo «foi publicado no diário lisbonense “República”,
n.º 2484, de 16 - dezembro - 1917.» Será que foi neste jornal que foi publicada a crítica a Três Cartas de Camilo? Aguarda-se possibilidade de consulta.
10 (Re)ler
BASTO, 1917b: 06.
Bibliografia [grafia atualizada]
BASTO, Cláudio, 1917: «Notas Camilianas – I», em Lusa [Ano I, n.º 2, de 01/04, Vol. I].
Viana do Castelo, p. 13.
------------, 1917a: Três
Cartas de Camilo. Viana do Castelo: Lusa.
------------, 1917b: «Uma explicação (Por causa das três cartas
de Camilo)»,em Lusa [Ano I, n.º 19, Vol. I]. Viana
do Castelo, pp. 149-150.
------------,
1917c: Uma
explicação (Por causa das três cartas de Camilo). Viana do Castelo: Lusa. (Separata de BASTO, 1917b. «O
mesmo artigo foi publicado no diário lisbonense “República”, n.º 2484, de
16-Dez.-1917». BASTO, 1948: 9).
------------, 1918: «Notas Camilianas – II», em Lusa [Ano II, n.º 41 e 42, de 15/11 e
01/12), Vol. II. Viana do Castelo, pp. 137-138.
BASTO, Hermínia (org.), 1948: Miscelânea de Estudos à Memória de Cláudio Basto. Porto.
VIANA, Rui A. Faria & BARROSO, António José, 2009: Publicações
Periódicas Vianenses. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do
Castelo.
Sem comentários:
Enviar um comentário