007. Viana em Camilo / [«Tramoias d'Esta Vida» (1863)a*]
Tramoias desta Vida é um conto que Camilo publicou,
em 1863, no jornal lisboeta Revolução de
Setembro e que, nesse mesmo ano, integrou na coletânea Noites de Lamego, título que o próprio, no prefácio, considera
«abstruso». [Cabral, 1989: 448-449 e 562-563] Assim:
[Branco,
19083: 5**]
Tramoias é um «conto moral». Ver-se-á,
depois, porquê. Assim o classifica o escritor-autor-narrador (nem sempre é
fácil distinguir estas instâncias narratológicas na obra camiliana), que informa,
ainda, em nota, ter sido pessoa fidedigna
que lhe contou a história, «acontecida,
ha quinze anos, na villa de Esposende e em outras partes».
Esta
nota constitui uma clara estratégia discursivo-narrativa dupla. Por um lado, de
veracidade ou, pelo menos, de verosimilhança; por outro, de sedução, fazendo do
leitor seu narratário mais ou menos explícito e dialogicamente cúmplice. Estratégia
que se mantém ao longo da narrativa e que é, como se sabe, uma das características
do estilo camiliano.
A
ação da narrativa começa, de facto, em Esposende. Mas passa também por outras
terras: «Pinhatel» (localidade que, a ter existido, se situaria no distrito de
Braga, mas que ainda não localizei), Castro Laboreiro, e cidades do Porto e Lisboa,
para referir os principais lugares onde se deram os acontecimentos narrados
mais relevantes. E ainda Vila do Conde: dois dos três conventos preferidos por
um dos personagens, onde, num deles, acabou por se recolher e falecer,
situavam-se neste concelho. O terceiro situava-se em Viana, onde, naquele tempo
(à volta de 1855), se mantinham abertos seis conventos, entre masculinos e
femininos. Mas Camilo não revela o nome nem a localização desta casa religiosa.
Ao
longo do Tramoias, o Escritor nomeia
Viana, explicitamente, por três vezes. A primeira encontra-se no seguinte
transcrito:
Agora vamos em cata d’elle ao Alto Minho. Vai o leitor
pasmar-se d’aquellas bem-aventuradas margens do Lima. Entra comigo em Vianna,
na louçã namorada do oceano, n’aquella esquiva formosa que vacilla entre
deixar-se amar das ondas, que lhe beijam os pés, ou dos arvoredos que lhe
enramam a fronte. Agora, vamos n’este barquinho rio acima até Ponte do Lima.
Não se me fique arrobado n’este ondear de esmeralda que a viração balança, que
receio me deixe ir sosinho em procura do Brazileiro. Aquillo são bosques, que
escondem moitas arrelvadas, e meandros de fontes, e amores de aves, e amores de
damas castellãs, que por ali se escondem mais conhecidas das estrellas que
nossas, e mais conhecidas ainda dos fáunos illustrados do sítio que das estrellas.
Aqui estamos na velha Ponte. Iremos por terra a Valença, que
é um ir sempre ao debaixo de abobodas de verdura.
Este
personagem, em cata e na peugada (dirá depois) de quem o escritor/narrador
quer ir, acompanhado pelo leitor/narratário – «vamos» e «Vai o leitor
pasmar-se» – é João Moreira, um brasileiro
(português de torna-viagem) que se dirige para Valença, com passagem pela velha Ponte [do Lima]. Respeitosamente
«velha», no sentido de vetusta, quererá dizer Camilo, referindo-se tanto à via como à vila. Ou não soubesse este cultíssimo autor que tanto uma (romana e medieval) como outra (fundada em 1125) são de muita
antiguidade.
Viana
nas Tramoias de Camilo recebe uma descrição
geográfica, poeticamente lírica e bucólica, bem como o seu rio e paisagens envolventes,
e, de passagem, uma breve alusão à verdura
do Alto Minho. São pormenores de pouco interesse para a história, mas que, por isso mesmo, mostram e confirmam as relações
simpáticas de Camilo para com Viana e a presença de Viana em Camilo. É um louvor
do escritor-poeta às belas condições geográficas e naturais desta terra, em
particular, e do Alto Minho, em geral. Nele, o escritor/narrador aponta e dá a
ver, como se um guia turístico fosse, ao leitor/narratário, as belezas
paisagísticas da cidade e de parte da região. Mas é também, implicitamente, a expressão
do apreço e consideração que Camilo tinha pelos seus inseparáveis amigos
vianeses, com os irmãos Barbosa e Silva à cabeça, aos quais se sentia
profundamente unido por laços muito fortes, quase fraternos, como se sabe(rá).
Mas,
além de brasileiro – perguntar-me-á o
leitor que ainda não leu ou já esqueceu a história
– (i) quem é este João Moreira e (ii) que vai ele fazer a Valença?
Convirá,
todavia, antes de (cor)responder, referir que este brasileiro, português de Esposende, não se enquadra no
brasileiro-tipo (e típico) camiliano. João Moreira não é, a nível humano e
social, como os outros emigrantes do século XIX que o Escritor frequentemente ridiculariza,
em novelos mais ou menos enredados das suas novelas.
Regressa
também endinheirado, como tantos outros, do Brasil, para onde emigrara menino, tal como o Jacinto de Deus e
Aquino, d’A Bruxa de Monte Córdova,
que aqui em Viana embarcou. [Cf.
Rodrigues, 2013 e/ou 2014] João teria uns dez anitos, quando deixou, em
Esposende, os pais e com eles a única irmã – Serafina – um nadita mais velha
que ele, possivelmente.
Como
outros brasileiros, também ele
procura libertar da pobreza os
familiares que em Portugal deixou pobres e pobres continuam. Todavia, não o faz
de forma interesseira, nem ostensiva e ostentosa. Não regressa carregado de
anéis e correntes, não fuma grossos charutos nem usa bengala encastoada. Não é gordo
de corpo nem traz espírito engordurado. Não negoceia afetos nem casamentos. Não
compra títulos nem comendas. Não corrompe padres nem consciências. Não afronta
nem confronta.
É, porém, um sexagenário, viúvo e solitário.
Quando estava rico e velho, morreu-lhe a mulher, e, no breve
termo de um anno, seus tres filhos. Lembrou-se então de Esposende e da irmã.
Estava só, amargurado, contemplador melancolico, de sua inutil riqueza. / Veiu,
então, para Portugal em busca de familia, e envergonhado de, só á hora do
desamparo, procurar sua irmã.
À
terra natal chegou, passados cinquenta
anos, e como forasteiro, anónimo
e irreconhecível pela da parentela e patrícios quis passar. Do Brasil, correspondência
ainda manteve com os pais, enquanto vivos foram. Depois, «casou, trabalhou,
enriqueceu para os filhos, e esqueceu-se da patria e da irmã».
Frente
à casa paterna, verifica que já não era a irmã quem nela morava. A nova proprietária informou-o de que a taverneira tia Serafina da Tenda enviuvara e, há dois anos, falecera. Com o enorme
desgosto que lhe dera a filha –
Balbina Rosa. Coitada, «chorou até
morrer, e poucas semanas chorou» – comentava-lhe a nova inquilina da antiga casa paterna.
João
Maria fica, assim, sabendo que, dos parentes mais próximos, só lhe restava a filha única da irmã e, por isso, sua
sobrinha. Só que Balbina, depois de requestada
pelo morgado de Pinhatel – Gastão de
Mendonça – fugiu de casa e entrou no
solar do fidalgo, «homem de quarenta anos, vicioso, dissipador e
escalavrado pela libertinagem». Ela, pelo contrário, «tinha dezesseis anos,
costumes irreprehensiveis, muita saude e muita alegria.»
Não
tardou, porém, que o nobre Gastão, aumentativo em nome e defeitos, «de linhagem
tão antiga, que se apagava nas trevas da mythologia», se cansasse e aborrecesse
dela. Balbina, torturada pelas mil
agulhas do remorso, não parava de chorar a mãe que abandonara e entretanto
falecera. O morgado, enfastiado, partiu
em requesto de outras, «ora no Porto,
ora na Foz, amando em toda a parte, com applauso de sua vaidade, inveja dos
rapazes e beneplacito de illustres damas, menos mal comportadas, na impeccavel
opinião publica.» De vez em quando, regressava, para vender propriedades. Mas logo
tornava à Foz, «onde perdêra, jogando, o dinheiro de outras, que tinha
vendido.»
Um
dia, porém, ao regressar, não encontrou Balbina. A moça sentiu-se abandonada,
traída e, acima de tudo, desamada. Os
criados informaram o patrão que ela
tinha abandonado o solar, sem deixar
rasto nem destino. Em Pinhatel, pensava-se que tinha regressado a Esposende. Em
Esposende, desconhecia-se-lhe o paradeiro. Desparecida,
rezaram-lhe pela alma: ter-se-ia atirado ao Cávado.
Mas
não. A nova proprietária da casa da falecida
Serafina informou o brasileiro desconhecido
que um moço lá da terra, soldado no
regimento de Valença, a tinha topado na serra do Laboreiro, pastora de cabras.
João decide procurar o sodado, na esperança de que ele o ajude a encontrar Balbina.
É,
neste momento da história, começada
em Esposende, que entra em cena, pela primeira vez, Viana, conforme o trecho
acima transcrito. João Moreira chega aqui, certamente de barco, e de barco
segue até Ponte de Lima. Vai, depois, para Valença, sob as tais abóbodas de verdura, certamente por
velha estrada e caminhos velhos, com pedras e vestígios ainda da antiga via
romana Braga – Tui.
Terá
o brasileiro encontrado o tal soldado
e, com ou sem ele, chegado à sobrinha?...
Ver-se-á
no próximo capítulo, perdão, post. A
não ser que queiram (re)ler, entretanto, o conto
contado por Camilo. Porém, se o fizerem, avisem-me, por favor. Sempre me livrarão
da próxima tramoia. Porque, se o não
fizerem, lá terão de me aturar noutra postagem.
[Continuará]
* Este post é uma versão reduzida (e adaptada ao presente formato e tipo de
edição), de parte de artigo publicado no tomo 47 (2013) Cadernos Vianenses. [Cf.
Rodrigues, 2013a)
** A fim de não sobrecarregar o post, com páginas de citações, informo
que a narrativa ocupa, na edição consultada [19083], as pp. 71 a
112, e que, de ora em diante, as citações efetuadas neste texto se encontram
entre as pp. 71 e 83, passim. Mais
informo que citações não ipsis verbis
vão em itálico.
Leituras
BRANCO,
Camillo Castello, 19083 (1.ª ed. 1863): «Tramoias d’Esta Vida». Em Noites de Lamego. Lisboa: Parceria Antonio
Maria Pereira; pp. 71-112.
CABRAL,
1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco.
Lisboa: Caminho. (2.ª ed., 2003)
RODRIGUES,
David F., 2013: «Viana & Camilo – Presenças e situações». A Falar
de Viana (Vol. II, Série 2). Viana do Castelo: Vianafestas, pp. 205-213.
----------,
2013a: «Viana em Camilo: [“Tramoias d’esta Vida”]. Cadernos Vianenses, Tomo 47. Viana do Castelo: Câmara Municipal de
Viana do Castelo; pp. 113-127.