024. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [21]
em Duas Horas de Leitura (1857) [XI]
Com este, termino a série de posts dedicados às relações de Camilo
Castelo Branco com os irmãos vianeses Luís e José Barbosa e Silva, explícita ou
implicitamente referidos na crónica «Do Porto a Braga», cujo primeiro título
foi «Peregrinação sobre a Face do Globo», reunida, depois com outros escritos,
em Duas Horas de Leitura. Nesta, o Escritor relata com muita fantasia e não
menor ironia e, por vezes, algum sarcasmo, o passeio que os três, juntamente
com Evaristo Basto, fizeram entre aquelas duas cidades, com paragem e pernoita
em Famalicão. Mas o destino final era o Bom Jesus do Monte, estância que, desde
muito cedo, o haveria de marcar afetivamente.
As melhores recordações que Camilo
teve do Bom Jesus foram depois de 1856, ano em que, com os três amigos,
visitara pela segunda vez. A primeira foi quando tinha 11 anos, em 1836, após a
morte do pai, a caminho de Vila Real, onde ficaria, juntamente com a irmã
Carolina, aos cuidados da tia paterna, Rita Emília. [Ver AQUI.]
Depois do ano da crónica referida, Camilo visitou muitas vezes a estância, na
companhia de Ana Plácida, ainda ela vivia com o marido, Manuel Pinheiro Alves.
Numa delas, os dois amantes terão tido oportunidade de ser um casal feliz,
física e psicologicamente, pela primeira vez. E outras se terão seguido,
evidentemente.
[Escadório
atual do Bom Jesus do Monte. Fotografia colhida em Google+ / Imagens / Bom
Jesus do Monte]
Mas a recordação pior que o
Escritor nos dá e revela do Bom Jesus é da «hospedaria
real», onde os quatro «peregrinos» tencionavam jantar e pernoitar. Jantar
ainda jantaram. Agora dormir, foi impossível, devido à falta de higiene, a tal
ponto de Camilo de desejar ver exposto «ao azorrague e às moscas o taverneiro
estabelecido no Senhor do Monte, como numa na «picota». [Branco, 18562:
165]
E prosseguindo, relata Camilo:
Quando os
nossos olhos mortaes acharam este foco de infecção, sentimos spasmos no
esophago, e estivemos a lançar naquelle chão maldicto o café forte de Braga.
Fôramos alli como a um manancial de inspirações saudosas, e encontramos uma
Aganippe de... d'onde beberam, talvez, os poetas que decoraram as paredes
d'aquella sentina. Nunca os beiços se te descollem d'essa fonte, taverneiro
ignobil! Já que não approveitas as grossas nascentes, que te jorram á porta,
para lavares o teu bragal, ainda eu te veja, sicario, reduzido, não a pó, que é
esse o commum destino da humanidade, mas.... Para elles são vozes no deserto
estas apostrophes; mas, se ellas chegarem aos ouvidos e ao illustrissimo nariz
da camara municipal de Braga, a ella incumbe vigiar o quarto ou cloaca n.º 2 da
immunda tasca, e remover d'alli aquellas colchas, fumigar aquelle quarto, e
desalojar o sordido taverneiro que alli está envergonhando a terra, provando
que elle é mais immoral do que foram todos juntos os judeus das capellas
visinhas.
Anojados e
phreneticos corremos ao quarto dos nossos rapazes a relatar o escandalo. E[varisto]
B[asto] regougava que o deixassem dormir, transigindo assim momentaneamente com
a impudencia. L[uís] B[arbosa] pediu com ancia umas piugas, e saltou da cama,
livido de terror. Então juramos não passar alli a noite, e reunimos em sessão
para decidirmos o que devia comer-se, menos susceptivel da influencia suja do
cozinheiro. Meditada profundamente a proposta, e recolhido cada qual em sua
consciencia, levantaram-se todos como um só homem e preromperam em vozes unanimes,
dizendo: — “Nós somos livres, o nosso estomago livre é, e, assim queremos
bacalhau.”
E. B. viera
juntar o seu brado á causa da justiça e da moralidade. […]
Em quanto o
bacalhau se cosia, fomos desenjoarnos com o ar purissimo do arvoredo.
[…]
Houve silencio
de alguns minutos. Foi E. B. que o quebrou assim:
“A mim
disseram-me que enviasse d'aqui um suspiro, nas azas da saudade, ao coração
saudoso... não direi de quem, porque o amor mais sancto é o que mais se
resguarda no sanctuario do mysterio. Um suspiro saudoso! Como darei eu um
suspiro?! É forçoso que se cumpra o sacrifício.” Disse, e soltou um som cavo,
coisa inclassificavel entre o arrôto e o espirro.
Não sei se
os leitores se riram; eu não pude. Aquelle gracejo para mim foi um incentivo de
mui dolorosa meditação. E não pude guardal-a só comigo: revelei-a assim aos
meus amigos:
“Se nos aqui
reunissemos antes dos vinte annos, E. B. não teria senão um suspiro em
caricatura com que saudasse neste logar a memoria de uma mulher? Os nossas
corações teriam, apenas, uma ironia para celebrar debaixo d'este céo o amor? É
bem lastimavel esta aridez de quatro homens, tres dos quaes [C., J. B. e E. B.] não ha muito que revellavam nos versos
paixões profundas, extasis do céo, amores incendiarios, saudades sanctas de uma
outra vida que não é esta! Que almas tão decahidas as nossas! Este local é como
um padrão onde devem vir afferir-se os corações que perderam no mundo o seu
valor. Quem não traz para aqui a imagem de uma mulher que possa cá purificar-se
em imagem d'anjo, é bem infeliz! Pois nem ao menos uma saudade do que fomos?
nem a esperança póde já reviver? Que sentes tu L. B.?
[“]Nada.[“]
“E tu, J.
B.?
[“]Nada:
estou prodigiosamente estupido. Preciso estar callado.[“]
“Mas no
silencio o que ouves? o que dizes?
[“]Nada: é
um cáhos de idêas, sem significação.[“]
“E tu, E. B.
que sentes?
[“]Vontade
de jantar. Essas perguntas são vans e pretenciosas. Trinta annos passados,
volta-se a ampulheta.[…] É chegada a tua vez: e tu que sentes? [“]
Eu ia dizer o que sentia, quando divizei dous
vultos sentados á sombra de uma arvore. […]
[…] Não sei d'olhos mais bonitos, nem de cabellos
negros que tão bem dissessem com o marfim do collo! Não sei quem ella é, nem
conheço o ditoso conjuge; mas não sirva isto de embargo aos meus parabens a
ella e a elle. Vivam muitos annos, e tenham muitos meninos, que eu vou comer o
meu caldo negro de Sparta que corresponde ao bacalhau de Braga.
Foi um
devorar homerico ! Tudo o que está dito na Gastronomia,
poema de Berchoux, é inferior áquillo! Por um auspicioso systema de
compensação, conheci que a vitalidade dos meus amigos refugira do coração para
outra viscera dos suburbios. Provou-se o elasterio do estomago, e levou-se á
evidencia que as brizas e agua fresca não eram suficiente alimento para nós.
Nunca Shakspeare ousaria dizer que Hamlet vivia d'ar e esperanças, se o pobre
moço, em vez de andar á bordoada com o padrasto, viesse até ao Bom Jesus de
Braga impregnar-se da molecula saborosa do bacalhau. Inaugurada a realeza do
estomago, como prova do maximo adiantamento, é difficil morrer de pena que não
seja a de uma indigestão.
Foi
justamente a morte que eu muito receei lá em cima. Ficamos n'um spasmo de tres
horas, depois do jantar. Confesso que me pareceu feia a natureza, e até feias
as mulheres que me sorriam divinas quando o bacalhau não era ainda metade da
minha existencia vegetal. Este estylo ressente-se do meu estado de então.
Immalamos, e
partimos para Braga.
Dentro do
carro, fomos rodados de modo que o regurgitamento cedeu aos choques.
Entramos na
cidade ao lusco-fusco.
Desde a
entrada até ao campo de Sanct’Anna fomos recebidos com assobios e guinchos e
mugidos dos garotos, aprendizes de chapelleiro, que vinham ás portas das
officinas ganir. Os nossos antigos descobridores quando saltavam em praia de
barbaros eram assim recebidos. O mais é que os patrões das officinas pareciam
folgar naquelle alarido da canalha. Que terra! Aquillo poderá ser gente? O que
lhes vale é o terço depois que uivam. Para que quererá Deus lá em cima
similhantes alarves?
Chegamos á
hospedaria da Estrella do Norte.
Vimos um par
de grossas pernas de uma redonda matrona que se estirava o mais commodamente
que se póde sobre uma cama, e dava gratis
o espectaculo aos que lhe passavam deante da sua porta. Pareceu-nos bastante
ingenua a nossa vizinha de quarto! Os commentarios ás pernas foram
interrompidos por um robusto “aqui-d'el-rei” que vinha da rua.
Saiba-se o
que é isto. E. B. desceu á rua, e nós fomos á janella. Vimol-o innovelar-se na
mó do povo que se apinhava em redor da victima lamuriante.
Depois lá
debaixo cá para o segundo andar, E.B. com toda a força dos seus pulmões,
exclamou:
“Foi o
fidalgo que lhe bateu.”
Apenas
proferida a palavra “fidalgo!” todo aquelle gentio escoou-se pelas travessas
lateraes, e o cidadão bracharense, desamparado, achou que era quéda sobre o
couce do fidalgo enrouquecer gritando pelo rei, que valia menos alli que o cabo
de policia.
[…]
Vou
concluir.
Passamos uma
noite atormentada. A legião dos persovejos lá de cima tinha destacamentos cá em
baixo. L. B. e E. B. andaram tres horas com os enxergões ás costas. Eu descobri
na minha cama um animal novo; não era bem insecto nem mollusco; repelli-o com
toda a força da minha indignação, e adormeci.
Ás tres
horas da manhã estavamos em marcha. Os dous irmãos Barbosas para Vianna, sua
bella patria: Evaristo Basto, e eu para o Porto.
Agora
seriedade:
No abraço de
despedida, conhecemos que ainda tinhamos coração, um grande coração para a
amizade. […] [Id.: 166-173]
NB1 – Foi respeitada a grafia da edição
consultada. O sinal […] indica fragmentos que não foram transcritos.
NB2 – Em Duas Horas de Leitura
encontram-se mais dois escritos em que o Camilo se refere aos irmãos vianeses Barbosa
e Silva, como a seu tempo se verá. Todavia, porque diretamente relacionada com
a crónica «Do Porto a Braga», apresentarei, no próximo post, uma carta que o Escritor escreveu a Evaristo Basto, em 1864,
e onde o romancista volta a referir-se, naturalmente, aos irmãos Barbosa e
Silva. Essa carta encontra-se na narrativa No
Bom Jesus do Monte (1864).
LEITURAS
BRANCO, C. C., 18582:
«Do Porto a Braga», em Duas Horas de Leitura. Porto: Cruz Coutinho.
-----------, 2014a: «Camilo
& e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[I], AQUI
-----------, 2014b: «Camilo
& e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[II], AQUI.
-----------, 2014c: «Camilo
& e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[III], AQUI.
-----------, 2014d: «Camilo
& e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[V], AQUI.
-----------, 2014e: «Camilo
& e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[VI], AQUI.
-----------, 2014f: «Camilo
& e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[VII], AQUI.
-----------, 2014g: «Camilo
& e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[VIII], AQUI.
-----------, 2014h: «Camilo
& e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[IX], AQUI.
-----------, 2014i: «Camilo
& e os irmãos Barbosa e Silva, em Duas Horas de Leitura (18582)
[X], AQUI.