terça-feira, 25 de março de 2014

007. Viana em Camilo / [«Tramoias d'Esta Vida» (1863)a*]


Tramoias desta Vida é um conto que Camilo publicou, em 1863, no jornal lisboeta Revolução de Setembro e que, nesse mesmo ano, integrou na coletânea Noites de Lamego, título que o próprio, no prefácio, considera «abstruso». [Cabral, 1989: 448-449 e 562-563] Assim:

[Branco, 19083: 5**]

Tramoias é um «conto moral». Ver-se-á, depois, porquê. Assim o classifica o escritor-autor-narrador (nem sempre é fácil distinguir estas instâncias narratológicas na obra camiliana), que informa, ainda, em nota, ter sido pessoa fidedigna que lhe contou a história, «acontecida, ha quinze anos, na villa de Esposende e em outras partes».
Esta nota constitui uma clara estratégia discursivo-narrativa dupla. Por um lado, de veracidade ou, pelo menos, de verosimilhança; por outro, de sedução, fazendo do leitor seu narratário mais ou menos explícito e dialogicamente cúmplice. Estratégia que se mantém ao longo da narrativa e que é, como se sabe, uma das características do estilo camiliano.


A ação da narrativa começa, de facto, em Esposende. Mas passa também por outras terras: «Pinhatel» (localidade que, a ter existido, se situaria no distrito de Braga, mas que ainda não localizei), Castro Laboreiro, e cidades do Porto e Lisboa, para referir os principais lugares onde se deram os acontecimentos narrados mais relevantes. E ainda Vila do Conde: dois dos três conventos preferidos por um dos personagens, onde, num deles, acabou por se recolher e falecer, situavam-se neste concelho. O terceiro situava-se em Viana, onde, naquele tempo (à volta de 1855), se mantinham abertos seis conventos, entre masculinos e femininos. Mas Camilo não revela o nome nem a localização desta casa religiosa.

Ao longo do Tramoias, o Escritor nomeia Viana, explicitamente, por três vezes. A primeira encontra-se no seguinte transcrito:

Agora vamos em cata d’elle ao Alto Minho. Vai o leitor pasmar-se d’aquellas bem-aventuradas margens do Lima. Entra comigo em Vianna, na louçã namorada do oceano, n’aquella esquiva formosa que vacilla entre deixar-se amar das ondas, que lhe beijam os pés, ou dos arvoredos que lhe enramam a fronte. Agora, vamos n’este barquinho rio acima até Ponte do Lima. Não se me fique arrobado n’este ondear de esmeralda que a viração balança, que receio me deixe ir sosinho em procura do Brazileiro. Aquillo são bosques, que escondem moitas arrelvadas, e meandros de fontes, e amores de aves, e amores de damas castellãs, que por ali se escondem mais conhecidas das estrellas que nossas, e mais conhecidas ainda dos fáunos illustrados do sítio que das estrellas.
Aqui estamos na velha Ponte. Iremos por terra a Valença, que é um ir sempre ao debaixo de abobodas de verdura.

Este personagem, em cata e na peugada (dirá depois) de quem o escritor/narrador quer ir, acompanhado pelo leitor/narratário – «vamos» e «Vai o leitor pasmar-se» – é João Moreira, um brasileiro (português de torna-viagem) que se dirige para Valença, com passagem pela velha Ponte [do Lima]. Respeitosamente «velha», no sentido de vetusta, quererá dizer Camilo, referindo-se tanto à via como à vila. Ou não soubesse este cultíssimo autor que tanto uma (romana e medieval) como outra (fundada em 1125) são de muita antiguidade.
Viana nas Tramoias de Camilo recebe uma descrição geográfica, poeticamente lírica e bucólica, bem como o seu rio e paisagens envolventes, e, de passagem, uma breve alusão à verdura do Alto Minho. São pormenores de pouco interesse para a história, mas que, por isso mesmo, mostram e confirmam as relações simpáticas de Camilo para com Viana e a presença de Viana em Camilo. É um louvor do escritor-poeta às belas condições geográficas e naturais desta terra, em particular, e do Alto Minho, em geral. Nele, o escritor/narrador aponta e dá a ver, como se um guia turístico fosse, ao leitor/narratário, as belezas paisagísticas da cidade e de parte da região. Mas é também, implicitamente, a expressão do apreço e consideração que Camilo tinha pelos seus inseparáveis amigos vianeses, com os irmãos Barbosa e Silva à cabeça, aos quais se sentia profundamente unido por laços muito fortes, quase fraternos, como se sabe(rá).

Mas, além de brasileiro – perguntar-me-á o leitor que ainda não leu ou já esqueceu a história – (i) quem é este João Moreira e (ii) que vai ele fazer a Valença?
Convirá, todavia, antes de (cor)responder, referir que este brasileiro, português de Esposende, não se enquadra no brasileiro-tipo (e típico) camiliano. João Moreira não é, a nível humano e social, como os outros emigrantes do século XIX que o Escritor frequentemente ridiculariza, em novelos mais ou menos enredados das suas novelas.
Regressa também endinheirado, como tantos outros, do Brasil, para onde emigrara menino, tal como o Jacinto de Deus e Aquino, d’A Bruxa de Monte Córdova, que aqui em Viana embarcou. [Cf. Rodrigues, 2013 e/ou 2014] João teria uns dez anitos, quando deixou, em Esposende, os pais e com eles a única irmã – Serafina – um nadita mais velha que ele, possivelmente.
Como outros brasileiros, também ele procura libertar da pobreza os familiares que em Portugal deixou pobres e pobres continuam. Todavia, não o faz de forma interesseira, nem ostensiva e ostentosa. Não regressa carregado de anéis e correntes, não fuma grossos charutos nem usa bengala encastoada. Não é gordo de corpo nem traz espírito engordurado. Não negoceia afetos nem casamentos. Não compra títulos nem comendas. Não corrompe padres nem consciências. Não afronta nem confronta.

 É, porém, um sexagenário, viúvo e solitário.

Quando estava rico e velho, morreu-lhe a mulher, e, no breve termo de um anno, seus tres filhos. Lembrou-se então de Esposende e da irmã. Estava só, amargurado, contemplador melancolico, de sua inutil riqueza. / Veiu, então, para Portugal em busca de familia, e envergonhado de, só á hora do desamparo, procurar sua irmã.

À terra natal chegou, passados cinquenta anos, e como forasteiro, anónimo e irreconhecível pela da parentela e patrícios quis passar. Do Brasil, correspondência ainda manteve com os pais, enquanto vivos foram. Depois, «casou, trabalhou, enriqueceu para os filhos, e esqueceu-se da patria e da irmã».
Frente à casa paterna, verifica que já não era a irmã quem nela morava. A nova proprietária informou-o de que a taverneira tia Serafina da Tenda enviuvara e, há dois anos, falecera. Com o enorme desgosto que lhe dera a filha – Balbina Rosa. Coitada, «chorou até morrer, e poucas semanas chorou» – comentava-lhe a nova inquilina da antiga casa paterna.
João Maria fica, assim, sabendo que, dos parentes mais próximos, só lhe restava a filha única da irmã e, por isso, sua sobrinha. Só que Balbina, depois de requestada pelo morgado de Pinhatel – Gastão de Mendonça – fugiu de casa e entrou no solar do fidalgo, «homem de quarenta anos, vicioso, dissipador e escalavrado pela libertinagem». Ela, pelo contrário, «tinha dezesseis anos, costumes irreprehensiveis, muita saude e muita alegria.»
Não tardou, porém, que o nobre Gastão, aumentativo em nome e defeitos, «de linhagem tão antiga, que se apagava nas trevas da mythologia», se cansasse e aborrecesse dela. Balbina, torturada pelas mil agulhas do remorso, não parava de chorar a mãe que abandonara e entretanto falecera. O morgado, enfastiado, partiu em requesto de outras, «ora no Porto, ora na Foz, amando em toda a parte, com applauso de sua vaidade, inveja dos rapazes e beneplacito de illustres damas, menos mal comportadas, na impeccavel opinião publica.» De vez em quando, regressava, para vender propriedades. Mas logo tornava à Foz, «onde perdêra, jogando, o dinheiro de outras, que tinha vendido.»
Um dia, porém, ao regressar, não encontrou Balbina. A moça sentiu-se abandonada, traída e, acima de tudo, desamada. Os criados informaram o patrão que ela tinha abandonado o solar, sem deixar rasto nem destino. Em Pinhatel, pensava-se que tinha regressado a Esposende. Em Esposende, desconhecia-se-lhe o paradeiro. Desparecida, rezaram-lhe pela alma: ter-se-ia atirado ao Cávado.
Mas não. A nova proprietária da casa da falecida Serafina informou o brasileiro desconhecido que um moço lá da terra, soldado no regimento de Valença, a tinha topado na serra do Laboreiro, pastora de cabras. João decide procurar o sodado, na esperança de que ele o ajude a encontrar Balbina.


É, neste momento da história, começada em Esposende, que entra em cena, pela primeira vez, Viana, conforme o trecho acima transcrito. João Moreira chega aqui, certamente de barco, e de barco segue até Ponte de Lima. Vai, depois, para Valença, sob as tais abóbodas de verdura, certamente por velha estrada e caminhos velhos, com pedras e vestígios ainda da antiga via romana Braga – Tui.
Terá o brasileiro encontrado o tal soldado e, com ou sem ele, chegado à sobrinha?...
Ver-se-á no próximo capítulo, perdão, post. A não ser que queiram (re)ler, entretanto, o conto contado por Camilo. Porém, se o fizerem, avisem-me, por favor. Sempre me livrarão da próxima tramoia. Porque, se o não fizerem, lá terão de me aturar noutra postagem.
 [Continuará]

* Este post é uma versão reduzida (e adaptada ao presente formato e tipo de edição), de parte de artigo publicado no tomo 47 (2013) Cadernos Vianenses. [Cf. Rodrigues, 2013a)
** A fim de não sobrecarregar o post, com páginas de citações, informo que a narrativa ocupa, na edição consultada [19083], as pp. 71 a 112, e que, de ora em diante, as citações efetuadas neste texto se encontram entre as pp. 71 e 83, passim. Mais informo que citações não ipsis verbis vão em itálico.

Leituras
BRANCO, Camillo Castello, 19083 (1.ª ed. 1863): «Tramoias d’Esta Vida». Em Noites de Lamego. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira; pp. 71-112.
CABRAL, 1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho. (2.ª ed., 2003)
RODRIGUES, David F., 2013: «Viana & Camilo – Presenças e situações». A Falar de Viana (Vol. II, Série 2). Viana do Castelo: Vianafestas, pp. 205-213.
----------, 2013a: «Viana em Camilo: [“Tramoias d’esta Vida”]. Cadernos Vianenses, Tomo 47. Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 113-127.
---------, 2014: 002. VIANA EM CAMILO [01] / [A Bruxa de Monte Córdova (1867)]. AQUI.

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