sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014


002. VIANA EM CAMILO [01]
           [A Bruxa de Monte Córdova (1867)]


Camilo faz referências explícitas a Viana, entre várias outras obras, no romance A Bruxa de Monte Córdova (1867). Nele, o escritor refere-se não só a esta cidade, mas também à Senhora d’Agonia, em dois momentos distintos e distantes, na cronologia dos acontecimentos narrados. O primeiro, a propósito de dois frades beneditinos, «espiões» das ideias e dos ideais de um seu terceiro confrade. O segundo é a descrição dos preparativos e do embarque de um menino de nove anos, filho deste terceiro frade, para o Brasil.
Primeira referência:

Frei Antonio do Sepulcro, filho de uma fidalga da villa da Barca, recebia semanalmente de sua mãe uma canastra recheada de garrafas de optimo Douro, de fiambre de Melgaço, de frigideiras bracharenses, de lampreias e salmões de Vianna no tempo, de todas as famigeradas comezainas de cada terra. O dom abbade aquinhoava d’estas lambarices e mandava a sua paternal benção á mãe de frei Antonio. [Branco, 1867: 23. Destaques meus.]

Tais «lambarices», porém, não eram saboreadas apenas pelo seu primeiro destinatário. Além do abade do mosteiro, um outro monge, frei Joaquim do Vale, amigo íntimo de frei António do Sepulcro [são de manter, por enquanto, estas nomeações] participava também nas «comezainas». E quem são estas duas personagens? Frades do mosteiro beneditino de S. Miguel de Refojos, Cabeceiras de Basto.
Camilo traça-lhes as respetivas biografias, nas linhas imediatamente anteriores:

Os dois frades collegiaes, que andavam sempre malsinando frei Thomaz, eram pontualmente os mesmos espiões do côro. Um chamava-se frei Joaquim do Valle e o outro frei António do Sepulcro. O primeiro era sobrinho do abbade: bajulavam-n’o todos em lisonja do tio. O segundo era filho bastardo do marquez de Ponte do Lima: acatavam-n’o com respeito do sangue, e honra que advinha de tal sujeito à congregação benedictina. Irmanavam-se os dois a primor de bestas consummadas. Andavam como presos e ajoujados pelo tamanho das orelhas. Não se apartavam um do outro senão á hora em que o preceito mandava cada frade a seu cubiculo. De dia, raro iam ao refeitorio. Tinham elles golosinas nas cellas, onde, derogadas as constituições da ordem, faziam mangedoura commum. [Id.: 22-23]

Continua-se a leitura, atenta como convém, e encontramos, quase no fim do capítulo, o narrador a informar-nos que frei Tomás de S. Plácido, do «limiar da sua cella […] viu que os espias mais circonvisinhos eram frei Antonio do Valle e frei Joaquim do Sepulcro». E logo depois, oferece-nos a narração do seguinte diálogo, travado entre estes monges:

Frei Joaquim, o filho do marquez, voltou-se galhofeiro para o seu amigo e disse:
– Não te parece, Valle, que elle fez um gesto de remeçar-se contra nós?!
– E cá o tinhamos, se o não pucham de dentro!... confirmou frei Antonio.
– Oh! que fanfarrão! – gargalhou o frade fidalgo esfregando as costas da mão esquerda com a palma da outra. – Então o homem é pimpão, pelos modos!... Quem me dera amansar um d’aquelles touros!... [Id.: 27 e 28]

«Alto lá, snr. romancista!»* Afinal, quem é quem? Querem ver que o nosso Amigo trocou os apelidos aos frades?
Pois trocou: o «filho bastardo do marquês» e de «uma fidalga da villa da Barca» é agora chamado frei Joaquim do Sepulcro; e o «sobrinho do abade» frei António do Vale. A troca é um lapso de Camilo que se mantém, nas duas edições seguintes, pelo menos. A 2.ª não traz data, mas deve ter saído na década de 1890, após a morte do Escritor. E Camilo não a deve ter revisto. A 3.ª é de 1904.
A edição mais recente que tive oportunidade de consultar é de 1982. Nesta, Alexandre Cabral, no final da «Nota introdutória», refere a distração do romancista. Esperar-se-ia, por isso, que a correção fosse introduzida. E foi. Mas de forma incorreta e incompleta. Limita-se a substituir os apelidos aos frades «espiões». Ou seja: na edição de 1982, Joaquim do Vale passa a do Sepulcro, enquanto  António do Sepulcro passa a do Vale. Todavia, frei Joaquim do Sepulcro continua, como nas três primeiras edições, «sobrinho do abade» e frei António do Vale «filho bastardo do marquês». Mas, depois, esta caracterização não se mantém. O lapso resolve-se, muito simplesmente, chamando ao «sobrinho do abade» frei António do Vale e ao «filho bastardo do marquês» Joaquim do Sepulcro, nas ocorrências anteriores ao diálogo acima transcrito.

Que frei Joaquim do Sepulcro é, de facto, o «frade fidalgo», verifica-se pelos novos dados, em episódios posteriores. Por exemplo,  no capítulo intitulado «A pérola e lustre da casa». (Os termos «pérola» e «lustre» são atributos com que Camilo ilustra, ironicamente, o monge.) O Escritor descreve-o como um cavaleiro «estylo do século XII», com «servos da gleba» e «creados pimpões e façanheiros». Que vivia ainda das «memorias feudaes dos seus avós», apesar das «alvoradas do seculo, saudadas pelo revolução de 1820». E que os seus actos, comportamentos e atitudes eram herança e continuação das «historias dos seus avoengos», as quais, todavia, «as chronicas não contam: raptos, violencias, escaladas ás alcovas maritais, deshonras chatinadas com alguns punhados de ouro pirateados na Asia e Africa». Continuava, enfim, a «raça de Abreus e Limas, recheados de costellas reaes.» [Branco, 1867: 45]


Passemos, agora, à segunda referência que, n’A Bruxa de Monte Córdova, Camilo faz a Viana. Encontramo-la no excerto seguinte. A sua melhor compreensão, para quem não leu o romance, pede uma contextualização, ainda que breve.
O «pequeno» Jacinto de Deus e Aquino é filho do ex-monge frei Tomás de S. Plácido (Tomás de Aquino, no civil), o frade espiado pelos seus confrades Joaquim do Sepulcro e António do Valle. Tomás morrera na «guerra de Lisboa», em 1833, alferes de lanceiros, no exército dos liberais (“malhados”), contra os absolutistas/miguelistas (“realistas”). A mãe, Angélica Florinda, ia lentamente matando o afeto e as ligações ao filho, por influência religiosa e psicológica de frei Silvestre do Coração Divino, seu diretor espiritual, como expiação do pecado infernal de ter sido mãe fora do matrimónio. Jacinto de Deus era, por isso, órfão de pai, efetivamente, e de mãe, afetivamente.
O «velho» João António era, neste momento, o verdadeiro pai adotivo do «pequeno» Jacinto, tendo-o a seu cuidado, desde os sete anos. João António, servo na casa dos Aquinos, acompanhara e protegera Tomás, nos mosteiros beneditinos de Tibães e de Refojos de Basto, com o nome religioso de frei João do Socorro. Regressado à vida civil, encontra Jacinto, triste, sozinho, roto e desprotegido, na beira de um caminho. As famílias paterna e materna não admitiam o parentesco do menino, nem a sua proteção. E os familiares leigos de frei Jacinto de Deus, primeiro pai adotivo da criança, também o tinham abandonado. João António, informado da identidade da criança, recolhe-a e promove a sua reeducação, numa escola de Braga. Concluídos os estudos com sucesso, aos nove anos de idade, Jacinto decide emigrar para o Brasil, com dois colegas, que já lá tinham os pais. E…

Foi João Antonio com o pequeno informar-se da ida dos outros, e aprasaram a epoca de se encontrarem em Vianna donde saía o navio. Nos trez mezes seguintes andou o velho ajuntando cartas de recommendação dos brasileiros mais grados da provincia do Minho, e foi ao Porto com o fim de dar conta a Angelica da determinação do filho.
A secular, neste tempo, consoante a opinião das religiosas com quem João António falou na portaria de Santa Clara, estava já na terceira via, na Unitiva, na purgação do fogo, perto do matrimonio divino, ou identificação com Deus. Em semelhante estado não podia falar com João Antonio. Conseguiu elle fazer-lhe chegar á mão uma carta. Angelica não a leu sem que o seu confessor a lesse primeiro, depois a prioreza, depois a escrivãa e finalmente ella. O velho esperou dois dias que o papel corresse todas estas chancelarias. Ao terceiro foi-lhe dada a resposta por um padre, onde a porteira o mandou. O director espiritual de Angélica louvou muito a delicadeza de João Antonio e a resolução do menino; quanto à licença, facultou-lh’a em nome da sua mãe, que sobre ser benção maternal era tambem benção de santa.
- Pois muito obrigado a vossa senhoria – disse João Antonio – O que me não agradou é que isto se demorasse tres dias. Pensei que não custasse tanto a receber os despachos das santas…
Jacinto de Deus e Aquino embarcou em 1843. João Antonio acompanhou-o a Vianna e viu fazer-se de véla a escuna. Se o ancião chorava, diziam-no as lagrimas caídas no degráo da capella da Senhora da Agonia, onde elle dobrou os joelhos e permaneceu emquanto enxergou o navio. Aquelle menino debruçado sobre o peitoril da escuna, com os olhos na capella, quando já não via o vulto do benfeitor, era Jacinto de Deus. Chorava de saudades, de arrependimento, de ingratidão! Ás palavras consoladoras dos seus tenros amigos e dos passageiros respondia:
– Não o torno a ver!...
O velho voltou para a sua casa. [Id.: 189-191. Destaques meus.]

Uma questão, além de outras, levanta esta última referência, ainda que sem interesse para a história. Aqui fica, contudo: seria possível, de facto, que, naquele tempo (1843), dos degraus da capela da Senhora d’Agonia, o «velho» João António enxergasse o navio que levava o «pequeno» Jacinto de Deus e Aquino para o Brasil? A imagem** seguinte parece favorecer a afirmativa. O templo da Senhora d’Agonia é bem visível ao fundo. É posível que das escadas da capela se visse o navio. A paisagem do Campo da Agonia era certamente muito diferente do atual. O porto de embarque seria, certamente, visível.


Dir-me-ão, entretanto, que o romancista quereria dizer que João António, depois do embarque e afastamento do navio, terá ido rezar à Senhora d’Agonia, pelo bom sucesso da viagem e pelo bom futuro do rapazinho. E que, enquanto rezava, não lhe sairia da cabeça a imagem do seu menino, a quem amava como verdadeiro filho, naqueles momentos afetivamente difíceis da despedida, embarque e partida. Porque, de facto, mesmo não sendo visível o porto e o navio, uma coisa é o real, outra a sua encenação romanesca, em que Camilo é mestre.
Um aspeto, contudo, se afigura indelével: já naquele tempo, a devoção à Senhora d’Agonia ultrapassava as fronteiras de Viana. Camilo, fruto da sua presença, visitas e convívio com os amigos vianeses, conheceria muito bem a geografia urbana e os arrabaldes da cidade, suas festas e festividades religiosas. Nesse tempo (década de 1840, tempo histórico da narrativa; 1867, tempo da narração), a fé nos poderes da Senhora d’Agonia, por um lado, e os festejos religiosos e profanos que a acompanhavam e complementavam, por outro, deviam ser já grandiosos e afamados, na cidade e no concelho, sem dúvida, mas também por esse Minho fora e, possivelmente, por esse país além. As festas de Viana ter-se-iam tornado já em grande romaria e arraial populares.  
Refira-se, de passagem, que o templo de hoje é resultado de uma ampliação ocorrida em 1873, mas já em 1744 tinha sofrido «obras de reedificação e ampliação». [Fernandes, 1990: 99] A capela a que o Escritor se refere era certamente mais modesta.

* Esta frase é do próprio Camilo, em Cenas da Foz, «Dinheiro» (1857: 261). João Júnior, pseudónimo e narrador do romance, coloca-se, dialógica e ironicamente, no papel do leitor e repreende-lhe (repreende-se), a competência de romancear. Vale a pena (re)ler o fragmento completo: «Alto lá, snr. romancista! Não se escreve assim um romance. Vossê assim desacredita-se, e ámanhã não tem quem o leia. […]»
** A imagem foi colhida AQUI.
 
Nota
Este post  é, em versão reduzida ao nível de texto e imagens, parte do artigo que, com o título de «Viana & Camilo - Presenças e situações», publiquei na revista A Falar de Viana [cf. Rodrigues, 2013]. As alterações introduzidas resultam, por um lado, da adequação do texto ao formato desta edição e, por outro, às leituras que da camiliana ativa e passiva venho fazendo. Além disso, as partes não reproduzidas encontram-se já abordadas em posts referidos em Abertura.


Leituras
(Agradeço à Biblioteca Municipal de Viana do Castelo as facilidades concedidas na consulta de algumas edições de obras de Camilo.)

BRANCO, Camillo Castello, 1860: Scenas da Foz (2.ª ed.). Porto: Casa de Cruz Coutinho, Editor.
-----------, 1867: A Bruxa de Monte-Cordova. Lisboa: Livraria de Campos Junior. Além desta, foram consultadas também a 2.ª ed. [(189?), Lisboa: Companhia Editora de Publicações Illustradas], 3.ª [(1904), Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira] e a edição do Círculo de Leitores (1982), 13.º vol. da coleção «Obras Escolhidas de Camilo Castelo Branco», com seleção e anotação de Alexandre Cabral.
CABRAL, 1982: «Nota introdutória», em BRANCO, 1982.
FERNANDES, Francisco José Carneiro, 1990: Viana Monumental e Artística. Espaço urbano e património de Viana do Castelo. Viana do Castelo: Edição do Grupo Desportivo e Cultural dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, E.P.
JÚNIOR, João. Ver BRANCO, 1860.
RODRIGUES, David F., 2013: «Viana & Camilo – Presenças e situações». Em A Falar de Viana (Vol. II, 2.ª Série), 2013. Viana do Castelo: Vianafestas; pp.205-213.
-----------, 2014: «Viana & Camilo – cadeia de relações», em http://vianacamilo.blogspot.pt/

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