002. VIANA EM CAMILO [01]
[A Bruxa de Monte Córdova
(1867)]
Camilo faz referências explícitas a
Viana, entre várias outras obras, no romance A Bruxa de Monte Córdova
(1867). Nele, o escritor refere-se não só a esta cidade, mas também à Senhora
d’Agonia, em dois momentos distintos e distantes, na cronologia dos
acontecimentos narrados. O primeiro, a propósito de dois frades beneditinos, «espiões»
das ideias e dos ideais de um seu terceiro confrade. O segundo é a descrição dos
preparativos e do embarque de um menino de nove anos, filho deste terceiro
frade, para o Brasil.
Primeira referência:
Frei Antonio do Sepulcro, filho de uma
fidalga da villa da Barca, recebia semanalmente de sua mãe uma canastra
recheada de garrafas de optimo Douro, de fiambre de Melgaço, de frigideiras
bracharenses, de lampreias e salmões de Vianna no tempo, de todas
as famigeradas comezainas de cada terra. O dom abbade aquinhoava d’estas
lambarices e mandava a sua paternal benção á mãe de frei Antonio. [Branco,
1867: 23. Destaques meus.]
Tais «lambarices», porém, não eram
saboreadas apenas pelo seu primeiro destinatário. Além do abade do mosteiro, um
outro monge, frei Joaquim do Vale, amigo íntimo de frei António do Sepulcro
[são de manter, por enquanto, estas nomeações] participava também nas
«comezainas». E quem são estas duas personagens? Frades do mosteiro beneditino
de S. Miguel de Refojos, Cabeceiras de Basto.
Camilo traça-lhes as respetivas
biografias, nas linhas imediatamente anteriores:
Os dois frades collegiaes, que
andavam sempre malsinando frei Thomaz, eram pontualmente os mesmos espiões do
côro. Um chamava-se frei Joaquim do Valle e o outro frei António do Sepulcro. O
primeiro era sobrinho do abbade: bajulavam-n’o todos em lisonja do tio. O segundo
era filho bastardo do marquez de Ponte do Lima: acatavam-n’o com respeito do
sangue, e honra que advinha de tal sujeito à congregação benedictina.
Irmanavam-se os dois a primor de bestas consummadas. Andavam como presos e
ajoujados pelo tamanho das orelhas. Não se apartavam um do outro senão á hora
em que o preceito mandava cada frade a seu cubiculo. De dia, raro iam ao
refeitorio. Tinham elles golosinas nas cellas, onde, derogadas as constituições
da ordem, faziam mangedoura commum. [Id.:
22-23]
Continua-se a leitura, atenta como
convém, e encontramos, quase no fim do capítulo, o narrador a informar-nos que
frei Tomás de S. Plácido, do «limiar da sua cella […] viu que os espias mais
circonvisinhos eram frei Antonio do Valle e frei Joaquim do Sepulcro». E logo
depois, oferece-nos a narração do seguinte diálogo, travado entre estes monges:
Frei Joaquim, o filho do marquez,
voltou-se galhofeiro para o seu amigo e disse:
– Não te parece, Valle, que elle fez um
gesto de remeçar-se contra nós?!
– E cá o tinhamos, se o não pucham de
dentro!... confirmou frei Antonio.
– Oh! que fanfarrão! – gargalhou o
frade fidalgo esfregando as costas da mão esquerda com a palma da outra. –
Então o homem é pimpão, pelos modos!... Quem me dera amansar um d’aquelles
touros!... [Id.:
27 e 28]
«Alto lá, snr. romancista!»* Afinal, quem é quem? Querem ver que o nosso Amigo trocou os apelidos aos frades?
Pois trocou: o «filho bastardo do marquês» e de «uma fidalga da villa da
Barca» é agora chamado frei Joaquim do Sepulcro; e o «sobrinho do abade» frei
António do Vale. A troca é um lapso de Camilo que se mantém, nas duas edições
seguintes, pelo menos. A 2.ª
não traz data, mas deve ter saído na década de 1890, após a morte do Escritor.
E Camilo não a deve ter revisto. A 3.ª é de 1904.
A edição mais recente que tive oportunidade de consultar é de 1982. Nesta,
Alexandre Cabral, no final da «Nota introdutória», refere a distração do
romancista. Esperar-se-ia, por isso, que a correção fosse introduzida. E foi.
Mas de forma incorreta e incompleta. Limita-se a substituir os apelidos aos
frades «espiões». Ou seja: na edição de 1982, Joaquim do Vale
passa a do Sepulcro, enquanto
António do Sepulcro passa a do Vale.
Todavia, frei Joaquim do Sepulcro continua, como nas três primeiras
edições, «sobrinho do abade» e frei António do Vale «filho bastardo do
marquês». Mas, depois, esta caracterização não se mantém. O lapso resolve-se,
muito simplesmente, chamando ao «sobrinho do abade» frei António do Vale e ao
«filho bastardo do marquês» Joaquim do Sepulcro, nas ocorrências anteriores ao
diálogo acima transcrito.
Que frei Joaquim do Sepulcro é, de facto, o «frade fidalgo», verifica-se
pelos novos dados, em episódios posteriores. Por exemplo, no capítulo intitulado «A pérola e lustre da
casa». (Os termos «pérola» e «lustre» são atributos com que Camilo ilustra,
ironicamente, o monge.) O Escritor descreve-o como um cavaleiro «estylo do
século XII», com «servos da gleba» e «creados pimpões e façanheiros». Que vivia
ainda das «memorias feudaes dos seus avós», apesar das «alvoradas do seculo,
saudadas pelo revolução de 1820». E que os seus actos, comportamentos e
atitudes eram herança e continuação das «historias dos seus avoengos», as
quais, todavia, «as chronicas não contam: raptos, violencias, escaladas ás
alcovas maritais, deshonras chatinadas com alguns punhados de ouro pirateados
na Asia e Africa». Continuava, enfim, a «raça de Abreus e Limas, recheados de
costellas reaes.» [Branco, 1867: 45]
Passemos, agora, à segunda referência que, n’A Bruxa de Monte Córdova,
Camilo faz a Viana. Encontramo-la no excerto seguinte. A sua melhor
compreensão, para quem não leu o romance, pede uma contextualização, ainda que
breve.
O «pequeno» Jacinto de Deus e Aquino é filho do ex-monge frei Tomás de S.
Plácido (Tomás de Aquino, no civil), o frade espiado pelos seus confrades Joaquim do Sepulcro e António do Valle.
Tomás morrera na «guerra de Lisboa», em 1833, alferes de lanceiros, no exército
dos liberais (“malhados”), contra os
absolutistas/miguelistas (“realistas”).
A mãe, Angélica Florinda, ia lentamente matando o afeto e as ligações ao filho,
por influência religiosa e psicológica de frei Silvestre do Coração Divino, seu
diretor espiritual, como expiação do pecado infernal de ter sido mãe fora do
matrimónio. Jacinto de Deus era, por isso, órfão de pai, efetivamente, e de
mãe, afetivamente.
O «velho» João António era, neste momento, o verdadeiro pai adotivo do
«pequeno» Jacinto, tendo-o a seu cuidado, desde os sete anos. João António, servo na casa dos Aquinos, acompanhara e
protegera Tomás, nos mosteiros beneditinos de Tibães e de Refojos de Basto, com
o nome religioso de frei João do Socorro. Regressado à vida civil, encontra
Jacinto, triste, sozinho, roto e desprotegido, na beira de um caminho. As
famílias paterna e materna não admitiam o parentesco do menino, nem a sua
proteção. E os familiares leigos de frei Jacinto de Deus, primeiro pai adotivo
da criança, também o tinham abandonado. João António, informado da identidade
da criança, recolhe-a e promove a sua reeducação, numa escola de Braga.
Concluídos os estudos com sucesso, aos nove anos de idade, Jacinto decide
emigrar para o Brasil, com dois colegas, que já lá tinham os pais. E…
Foi João Antonio com o pequeno informar-se
da ida dos outros, e aprasaram a epoca de se encontrarem em Vianna donde saía o navio. Nos
trez mezes seguintes andou o velho ajuntando cartas de recommendação dos
brasileiros mais grados da provincia do Minho, e foi ao Porto com o fim de dar
conta a Angelica da determinação do filho.
A secular, neste tempo, consoante a
opinião das religiosas com quem João António falou na portaria de Santa Clara,
estava já na terceira via, na Unitiva, na purgação do fogo, perto do matrimonio
divino, ou identificação com Deus. Em semelhante estado não podia falar com
João Antonio. Conseguiu elle fazer-lhe chegar á mão uma carta. Angelica não a
leu sem que o seu confessor a lesse primeiro, depois a prioreza, depois a escrivãa
e finalmente ella. O velho esperou dois dias que o papel corresse todas estas
chancelarias. Ao terceiro foi-lhe dada a resposta por um padre, onde a porteira
o mandou. O director espiritual de Angélica louvou muito a delicadeza de João
Antonio e a resolução do menino; quanto à licença, facultou-lh’a em nome da sua
mãe, que sobre ser benção maternal era tambem benção de santa.
- Pois muito obrigado a vossa senhoria
– disse João Antonio – O que me não agradou é que isto se demorasse tres dias.
Pensei que não custasse tanto a receber os despachos das santas…
Jacinto
de Deus e Aquino embarcou em 1843. João Antonio acompanhou-o a Vianna e viu fazer-se de véla a
escuna. Se o ancião chorava, diziam-no as lagrimas caídas no degráo da capella da Senhora da Agonia,
onde elle dobrou os joelhos e permaneceu emquanto enxergou o navio. Aquelle
menino debruçado sobre o peitoril da escuna, com os olhos na capella, quando já
não via o vulto do benfeitor, era Jacinto de Deus. Chorava de saudades, de
arrependimento, de ingratidão! Ás palavras consoladoras dos seus tenros amigos
e dos passageiros respondia:
– Não o
torno a ver!...
O velho
voltou para a sua casa. [Id.:
189-191. Destaques meus.]
Uma questão, além de outras, levanta esta última referência, ainda que sem
interesse para a história. Aqui fica, contudo: seria possível, de facto, que,
naquele tempo (1843), dos degraus da capela da Senhora d’Agonia, o «velho» João
António enxergasse o navio que levava o «pequeno» Jacinto de Deus e
Aquino para o Brasil? A imagem** seguinte parece favorecer a afirmativa. O
templo da Senhora d’Agonia é bem visível ao fundo. É posível que das escadas da
capela se visse o navio. A paisagem do Campo da Agonia era certamente muito
diferente do atual. O porto de embarque seria, certamente, visível.
Dir-me-ão, entretanto, que o romancista quereria dizer que João António,
depois do embarque e afastamento do navio, terá ido rezar à Senhora d’Agonia,
pelo bom sucesso da viagem e pelo bom futuro do rapazinho. E que, enquanto
rezava, não lhe sairia da cabeça a imagem do seu menino, a quem amava como verdadeiro filho, naqueles momentos
afetivamente difíceis da despedida, embarque e partida. Porque, de facto, mesmo
não sendo visível o porto e o navio, uma coisa é o real,
outra a sua encenação romanesca, em que Camilo é mestre.
Um aspeto, contudo, se afigura indelével: já naquele tempo, a devoção à
Senhora d’Agonia ultrapassava as fronteiras de Viana. Camilo, fruto da sua
presença, visitas e convívio com os amigos vianeses, conheceria muito bem a
geografia urbana e os arrabaldes da cidade, suas festas e festividades
religiosas. Nesse tempo (década de 1840, tempo histórico da narrativa; 1867,
tempo da narração), a fé nos poderes da Senhora d’Agonia, por um lado, e os
festejos religiosos e profanos que a acompanhavam e complementavam, por outro,
deviam ser já grandiosos e afamados, na cidade e no concelho, sem dúvida, mas
também por esse Minho fora e, possivelmente, por esse país além. As festas de
Viana ter-se-iam tornado já em grande romaria e arraial populares.
Refira-se, de passagem, que o templo de hoje é resultado de uma ampliação
ocorrida em 1873, mas já em 1744 tinha sofrido «obras de reedificação e
ampliação». [Fernandes, 1990: 99] A capela a que o Escritor se refere era certamente mais modesta.
Nota
Este post é, em versão reduzida ao nível de texto e imagens, parte do
artigo que, com o título de «Viana & Camilo - Presenças e situações», publiquei na revista A Falar de Viana [cf. Rodrigues, 2013]. As alterações introduzidas
resultam, por um lado, da adequação do texto ao formato desta edição e, por
outro, às leituras que da camiliana ativa e passiva venho fazendo. Além disso,
as partes não reproduzidas encontram-se já abordadas em posts referidos em Abertura.
Leituras
(Agradeço à Biblioteca Municipal de
Viana do Castelo as facilidades concedidas na consulta de algumas edições de
obras de Camilo.)
BRANCO, Camillo Castello, 1860: Scenas da Foz (2.ª ed.). Porto: Casa de
Cruz Coutinho, Editor.
-----------, 1867: A Bruxa de Monte-Cordova. Lisboa: Livraria de Campos Junior. Além
desta, foram consultadas também a 2.ª ed. [(189?), Lisboa: Companhia Editora de
Publicações Illustradas], 3.ª [(1904), Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira]
e a edição do Círculo de Leitores (1982), 13.º vol. da coleção «Obras
Escolhidas de Camilo Castelo Branco», com seleção e anotação de Alexandre
Cabral.
CABRAL, 1982: «Nota introdutória», em
BRANCO, 1982.
FERNANDES, Francisco José Carneiro,
1990: Viana Monumental e Artística.
Espaço urbano e património de Viana do Castelo. Viana do Castelo: Edição do
Grupo Desportivo e Cultural dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, E.P.
JÚNIOR, João. Ver BRANCO, 1860.
RODRIGUES, David F., 2013: «Viana &
Camilo – Presenças e situações». Em A
Falar de Viana (Vol. II, 2.ª Série), 2013. Viana do Castelo: Vianafestas;
pp.205-213.