009. Camilo & os irmãos Barbosa e Silva [09]
em O Vinho do Porto (1884) [I]
Há
130 anos, a 20 de abril de 1884, Camilo concluía O Vinho do Porto – Processo de uma bestialidade ingleza, sendo editado,
no mesmo ano, pela Livraria Civilização do Porto. A narrativa é dedicada a
Thomaz Ribeiro (então ministro do reino, também destinatário invocado e
convocado, ao longo do texto-discurso) com as seguintes palavras:
Como sei que o teu amor ás
perfidas trêta e manhas de Inglaterra não é dos mais acrisolados, venho offerecer
ao teu sorriso um SAPECIMEN de bestialidade ingleza. [Branco, 1884:
5]
Não interessará, neste blogue, analisar
miudamente o tal «processo da bestialidade», por não dizer respeito ao objeto e
objetivo dos posts que neste sítio venho metendo. Objeto e objetivo
que são, recordo, apresentar referências explícitas de Camilo a Viana e/ou aos
seus amigos vianeses, com especial destaque para os irmãos Barbosa e Silva e,
muito particularmente, ao benjamim da família – José.
O
leitor começa e saborear a deliciosa prosa d’O Vinho do Porto e, a dada altura, passados cerca de 2/3 do livro,
depara (e deve mesmo parar) com a seguinte passagem, onde o Escritor recorda a «instituição
carpideira» de que fez parte, presidida por José Barbosa e Silva.
[Id., 1884: 71-73. (Adaptado)]
O fragmento transcrito é
suficientemente claro, a respeito da referência (respeitosa, como sempre) que
Camilo faz ao seu grande amigo de Viana. E a propósito, fala das imitações e
falta de originalidade daqueles que seguem, acriticamente, o estilo dos grandes
escritores.
O acontecimento central de O Vinho do Porto é o naufrágio, nas
águas do Douro, ocorrido em 12-V-1861, em que o barão de Forrester (J. James) «desapareceu d’este alfobre [Porto]
de charlatães forasteiros, de um modo tragico, ha vinte e trez annos» [id.: 11-12]. Mas a sua «casa luxuosa na
Ramada-Alta era o confluente dos próceres portuenses e da provincia vinícola»,
tais como «titulares, desembargadores-conselheiros, ministros de estado
honorários, os maiores proprietários do Douro, e poetas arcádicos da pacotilha,
que faziam dithyrambos ao jantar». [Id.:
15] A todos Camilo descreve com a graça, ironia e, por vezes, o sarcasmo que
lhe são conhecidos:
Ora
estes commensaes de Forrester, quasi todos vinhateiros, ignoravam, excepto dous
ou trez, a lingua ingleza e desconheciam portanto o descrédito com que o
amphitriao mareára os seus vinhos no mercado de Londres; mas o governo, que
possuia idiomas como um Calepino, pegou de uma coroa de barão e pôl-a na cabeça
de J. James - barão
de Forrester. E, se não morre tão cedo, e
faz nova edição das calumnias contra a mais rica e ameaçada industria
portugueza - uma segunda edição peorada e mais incorrecta – o governo luso
fasia-o visconde, não é verdade? [Id.:
25]
No naufrágio,
pereceu também a referida Gertrudes. O Escritor recorda-a e confessa ter pensado
dedicar-lhe «um artigo necrológico», como sinal de gratidão, à altura dos inúmeros
favores que ela, graciosamente, dedicadamente, prolongadamente lhe
prodigalizara.
Quem foi esta
mulher, a quem o Escritor preferia chamar Gertrúria, e que favores e tais lhe
concedeu ela, fica para o próximo post,
a fim de não sobrecarregar este, ainda mais.
Quanto ao processo de uma bestialidade inglesa
acerca do vinho do Porto, não há como ler O
Vinho do Porto. Além de edições mais antigas, a mais recente data de 2000,
prefaciada pelo escritor e camilianista José Viale Moutinho.
Mas sempre lhes
direi que o dito processo consistia,
como se deixa entrever no fragmento acima transcrito, em certos ingleses
depreciarem o vinho do Douro, apesar de serem seus negociantes. E a bestialidade, consciente ou
inconscientemente inscrita no mesmo processo, consistiu em autores ingleses,
além de atacarem o vinho, não saberem distinguir a jeropiga portuguesa, da escrita com <j> da escrita com
<g>. Naquele tempo, claro! E Camilo aproveita a questão gráfica e
linguística para nos oferecer mais um belíssimo trecho das suas reminiscências:
Para
corroborar o Forrester e açular as iras contra o vinho do Porto, o outro
pamphletista, Whittaker, invoca a opinião unanime dos medicos inglezes que
reputam o vinho procedente de Portugal uma peste para o estomago e para o figado;
por quanto o summo da uva é quasi uma idea abstracta na moxinifada de
aguardente, baga, melaço e jeropiga. Elle não escreve sem desculpavel horror a
palavra JEROPIGA.
E continuando, dirigindo-se ao seu
grande amigo Tomás Ribeiro, o Escritor explica «o segredo d[est]a bestialidade inglesa»,
assim:
James
Forrester, tão respeitador dos vinhos portuguezes como da nossa orthographia,
tinha escripto “Jeropiga” com J. Parece que d'esta bagatella não devia surdir
grande equivoco na percepção do pensamento; porém, succede que a palavra com G
ou com J dá duas significações de coisas e serventias, e entradas e sahidas
muito diversas. Whittaker, para saber radicalmente o que era Jeropiga, abriu o
Diccionario portuguez de Constâncio, e encontrou: JEROPIGA, Ajuda, clyster, bebida medicinal.
Tremulo
de indignação e livido de nôjo, brada o inglez: “Esta ultima expressão (bebida medicinal) é o mesmo que mézinha; quanto ás duas primeiras (ajuda, clyster) são a mesma coisa, tem o mesmo sentido, e dispenso-me
de as traduzir. Que bellas coisas a gente bebe!”
Ó
Thomaz Ribeiro, quem não sentiria vontade de mandar o inglez beber outras? [Id., 1884: 27-28]
Então, até à Gertrúria ou Gertrudes. Ou será Eufrázia?!...
Então, até à Gertrúria ou Gertrudes. Ou será Eufrázia?!...
NB – Respeitei a grafia das edição consultada, em todas as citações principais.
Leituras:
BRANCO, Camilo Castelo,
1884: O Vinho do Porto – Processo de uma bestialidade ingleza.
Porto: Livraria Civilização.