008. Viana em Camilo / [«Tramoias d'Esta Vida» (1863)b*]
Terminava
o post anterior perguntando se João Moreira, o brasileiro português de Esposende,
protagonista destas tramoias
camilianas, depois de chegar a Viana a caminho de Valença, teria encontrado aqui
o soldado que havia avistado, para as bandas de Castro Laboreiro, Balbina Rosa.
Encontrou,
sim senhor. José Torto, o tal soldado que havia reconhecido a sua conterrânea
desaparecida, quando escoltava uns presos
dos Arcos [de Valdevez] para outro
ponto [ou seria posto?], estava
no quartel. O comandante autorizou que o
soldado n.º 24 da 4.ª companhia acompanhasse o tio de Balbina a Castro
Laboreiro. E foi assim:
«Chegaram
ao romper da manha do segundo dia de jornada aos montados de Entrime, e do
pincaro mais levantado descortinaram em deredor os rebanhos que iam subindo das
povoas escondidas nas gargantas da serra. Foram á falla com o primeiro pastor,
que avistaram, e descobriram que havia em Castro Laboreiro uma rapariga ao
serviço de um lavrador, vinda de longe, e chamada Francisca. Os signaes d’esta
Francisca exactamente condiziam com os de Balbina. Devia ser ella. D’ali
baixaram ao outeiro onde o soldado a topara, e, por felicidade de todos, ao
dobrarem o cotovello de um barrocal, entreviram, ao travez da ramagem de uns
carvalhos, a pastora, sentada á borda de um regato, que devia ser um braço da
ribeira das Varzeas, a qual por ali se infiltra na aridez d’aquelles algares.» [Branco, 19083: 84**]
{Será que Camilo se escondeu nestes montes e vales alto-minhotos quando, em 1860 (três anos antes da escrita e publicação de «Tramoias»), andou fugido, para não ser preso, com receio de ser degredado para África, na sequência do processo de adultério desencadeado pelo marido de Ana Plácido (1831-1895), Manuel Pinheiro Alves (1807-1863)? Talvez. O escritor mostra conhecer bastante bem a paisagem. Recorde-se que Ana Plácido tinha sido presa, em 6 de junho de 1860. Camilo acabou por se entregar quatro meses depois, a 1 de outubro. Cf. Cabral, 1989: 221, 2.ª col. Leia-se, também, Memorias do Carcere (vol. I), onde o Escritor nos conta a história da prisão do «senhor padre Manoel dos Arcos [de Valdevez]», seu colega presidiário na Cadeia da Relação do Porto, depois de ter estado na de Braga, por causa de «uns amores» com «uma mocetona» daquele concelho. [Cf. Branco, 18642: 160-166]}
Confirmados
a identidade e parentesco, por um lado, e acordado o termo do trabalho da
pastora, por outro, todos regressaram satisfeitos aos seus sítios e afazeres.
Todos, menos Bernardo, filho do lavrador ex-dono
da ex-criada ex-Francisca. O rapaz
ficou inconsolável: amava a moça, coitado.
Empinado no cimo de
uma colina, vê-a partir,
saudoso e sofrido, afundado em lágrimas. E o autor-narrador aproveita para, num
recorte ultra-romântico, associar as amarguras do amor não correspondido às
agruras da agreste paisagem:
«Que
alma de poeta soffreu já ahi cruz de saudade tão dolorosa? Que lagrimas se
secaram n’aquellas penedias broncas! O desventurado lançou-se por terra e
escondeu a face nas urzes. As suas lagrimas, ó traspassada alma, podia vêl-as o
ceu, que eram puras!
[…]
Ninguem mais fallará de ti, pobre solitario das montanhas!
Vai chorar á margem d’esses regatos! As flores silvestres te
dirão que as lagrimas de Balbina as fizeram reviçar em suas hastes ressequidas.
Afaga esse cão que lhe lambia as mãos. Ahi tens a rez que se aninhava no regaço
d’ella. […]
Ella lá vai!... Se alguma vez a vires, dirás comtigo:
– Parecia-se com esta fidalga uma pastorinha que eu amei, e ainda agora
amo, nas minhas serras do Laboreiro!»
Pois,
de facto, como fidalga deveria passar a viver, sob o mesmo luxuoso teto e fora
dele, a sobrinha com o tio, uma vez chegados à residência do Porto. Porém (e
repare-se como, na grande cidade, a filha da taverneira de Esposende é tratada),
«D.
Balbina Rosa Moreira tinha criadas, que mal a conheciam, carruagem em que nunca
sahia, e ricos vestidos que nem sequer examinava. / O tio passava em
conversação com ella o maior numero de horas, bem que a historia da sua
desgraça quiz ouvil-a uma só vez. / Tiral-a da solidão do seu quarto, fazêl-a
erguer mão da costura, leval-a a theatros e recreações é que nunca vingara.
Balbina, com a branda defeza das lagrimas, além de vencer, acareava a mais o
amor do velho.»
É
logo a seguir a esta transcrição que aparece a segunda referência explícita a
Viana. Ao fim de um mês, João Moreira regressa aqui e logo depois ao Minho.
Para
quê?
«Planeou
o velho uma traça de vingança incruenta sobre o descaroado deshonrador de sua
sobrinha. Na urdidura da trama é que elle anda. / Informou-se, e soube que o
morgado de Pinhatel está hipothecando as suas propriedades, restantes da
doação, que a consorte divorciada judicialmente levantou.»
“Afinal,
havia outra!” – dirá o experiente leitor, das vidas deste mundo real e do mundo
possível que as novelas camilianas o primeiro dramaticamente representam.
Havia:
Perpétua: uma fidalga mais viva que o
morgado. E tão vivida quanto ele,
pelo menos, ou seja, nos máximos. O rico Gastão gastou (a aliteração e
paronímia, aqui, ficam bem) com ela o resto dos bens que ainda possuía, até
ficar pobre, paupérrimo, a viver de
esmolas.
Assim
começou esta sua nova relação, com esta sua nova amante:
«Aconteceu
ver ele uma dama deslumbrante, de família genealógica, maior de vinte e oito
anos, galhofeira, fascinadora, amestrada e esperta, á custa dos logros da
poesia; prosa, em fim, mas belissima prosa. Amou-a; foi acolhido, e logo
repellido; d’ahi a pouco amado, e outra vez aborrecido; um dia, requestado, e,
no seguinte, desfeiteado. A resulta d’isto foi um dia casarem-se, com
escripturas cavilosamente vantajosas para a noiva, que já sabia com quem as
havia de ter.»
E
depois? Bem, depois, terá o leitor de conhecer, lendo, em «Tramoias desta Vida»,
as relações de íntima aproximação e logo de violento afastamento que este casal
de fidalgos mantém e suporta, até que o divórcio os separe. Entretanto, leitor,
aprecie esta pérola:
«Rompeu
a desordem. Gladiaram-se de língua até se retirarem de punhos cerrados cada um
para seu quarto. Não se viram oito dias; e, para se verem, foi mister que o
vigario interviesse na reconciliação com o Evangelho em punho, posto que para o
caso sujeito tanto valesse o Evangelho, como o Alcorão. E tanto isto é verdade,
que, quinze dias passados, assanharam-se de novo, e o padre voltou com o
Evangelho, e sahiu corrido do que ouviu a respeito da religião. É que D.
Perpetua, no acume do seu odio á aldêa, negava Deus; e Gastão, se já não fosse
atheu, nem houvesse atheus, inventava-se atheu por ter havido um Deus que fez
similhante mulher!»
Enquanto
leem as tramoias em que se meteram –
D. Perpétua, lá por Lisboa, D. Gastão de Mendonça, cá pelo Minho – sempre lhe
direi que, para recuperarem algum estatuto social e económico, os dois desgraçados fidalgos contaram, uma e
outro (ele, no Minho, mais que ela, em Lisboa), com a caridosa, generosa,
preciosa ajuda e perdão de D. Balbina Rosa Moreira e do seu tio senhor João
Moreira. Depois de mútuo acordo de vontades e sentimentos, cordial e
religiosamente conversado, consentido e celebrado.
Morreram,
pouco tempo depois. Ele, primeiro, e realmente. Ela, simbolicamente, ao recolher-se,
oito dias depois, a um dos três conventos
seus preferidos, e depois, de facto, entre finais de 1854 e princípios de 1855.
E um desses conventos situava-se aqui em Viana.
«Morreu
João Moreira. / Vários sujeitos do Porto, estimaveis a todos os respeitos,
quando souberam, com o seu olphato de córvos inoffensivos, que o brazileiro era
cadaver, e deixara uma sobrinha muito rica, rodearam os testamenteiros, uns
allegando que eram gentis-homens, outros mostrando que eram homens gentis,
outros recenseando a “fortuna” que esperavam reunir depois da morte de quatro
tias e sete tios decrepitos. Os testamenteiros respondiam que escassamente
conheciam a sobrinha do defunto, e sabiam que ella ia recolher-se no mosteiro
de Villa do Conde, Vianna, ou Vairão. Estes galãs saíam atónitos da seráfica
brutalidade da herdeira. E attribuiam a mania á influencia dos fautores do Immaculado Coração de Maria, por não
terem ainda os Lazzaristas á sua
disposição.»
Mas
que mosteiro seria esse?
Nem
mesmo depois de morta esta mártir-heroína
do amor (como tantas outros protagonistas femininos de novelas camilianas)
o autor-narrador revela o convento, dos três por ela preferidos, onde entrou e
onde, a breve termo, se finou,
possivelmente, em finais de 1854. Indica apenas que, no começo do ano seguinte, um personagem deste conto foi «á portaria
do mosteiro de*** perguntar pela saude da secular Balbina Rosa Moreira.» Como
tinha feito, antes, quatro vezes em cada
ano, sem, contudo, nunca ter chegado
a vê-la.
E
quem seria esse personagem? O escritor identifica-o. Mas prefiro propor ao
leitor deste post que ainda não
chegou ao fim das tramoias destas vidas por Camilo contadas, que
coloque, a seguir, a cruz, na quadrícula correspondente à hipótese mais
provável. Recorde que o conto é, como advertiu o autor, moral.
Que
personagem, em «Tramoias d’Esta Vida», ia ao mosteiro saber de Balbina Rosa?
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a) O velho fidalgo Gastão de Mendonça?
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b) O soldado do regimento de Valença,
José Torto?
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c) Bernardo, o filho do lavrador de
Castro Laboreiro?
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d) O lavrador de Castro Laboreiro?
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e) D. Perpétua?
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f) Outro? (Neste caso, quem?
R:________________________________________)
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Foi,
certamente, alguém que viveria não muito distante desse anónimo convento. Que
bem podia ser o de Sant’Ana
(1510-1895) ou o de S. Bento
(1550-1891) [cf. Alpuim, 1979; Pinho,
2009 e 2010], que eram dois conventos femininos que em Viana ainda existiam, na
altura, e para onde poderia ter entrado, nos primeiros anos de 1850, a secular Balbina Rosa Moreira.
Estes
conventos eram ambos beneditinos, localizados, curiosamente, muito próximo um
do outro, nesta nova cidade de Viana
do Castelo. Nova, porque a vila de Viana do Minho havia sido elevada à
categoria de cidade, por carta régia
da Rainha D. Maria II, em 20 de janeiro de 1848, com a designação de Viana do Castelo. Mas que, durante largos
e largos anos, continuou a ser identificada e (re)conhecida, na fala e por
escrito, simplesmente por Viana, afetivamente.
Viana que o homem e escritor, digo, homem-escritor Camilo, à sua particular
maneira crente e religioso, por um lado, e curioso e inquieto andarilho, por
outro, bem conhecia. Por ter visitado e percorrido, sozinho ou seguido pelo seu
inseparável Martírio (cão), ou na
companhia dos seus mais fieis amigos vianeses, os dois irmãos José e Luís
Barbosa e Silva.
As
muitas e, por vezes, extensas referências que o grande escritor faz, com maior
frequência a Viana do Castelo, mas também a outras terras do Alto-Minho, são a
prova indelével das relações que Camilo estabeleceu e firmou com esta cidade e
esta região. Como acontece em Cenas da
Foz (1857) e A Bruxa de Monte-Córdova
(1867), como já mostrei em Rodrigues 2013, e acabei de mostrar, neste e no post anterior, em «Tramoias desta
Vida» (1863), posts estes que são resumos do artigo publicado em Rodrigues, 2013a.
Hei
de continuar, em futuros post, a ler
e a dar a ler como, também em outras obras, Camilo perpetua o nome da cidade de
Viana do Castelo. O que, para bom entendedor…
* Este post, continuação do anterior,
é uma versão reduzida (e adaptada ao presente formato e tipo de edição), de
parte de artigo publicado no tomo 47 (2013) Cadernos
Vianenses. [Cf. Rodrigues, 2013a)
** A fim de não sobrecarregar o post, com as páginas das citações,
informo que a narrativa ocupa, na edição consultada [19083], as pp.
71 a 112, e que, de ora em diante, as citações efetuadas neste texto se
encontram entre elas, passim. Mais
informo que citações não ipsis verbis
vão em itálico.
NB - O desenho da imagem representando um serrana de Castro Laboreiro é de Manuel Couto Viana e foi retirada de Roteiro de Viana, 1969, s/p. «A Mulher de Castro Laboreiro» seguinte encontra-se AQUI.
LEITURAS
ALPUIM,
Maria Augusta d’, 1979: «Carmelitas em Viana».
Cadernos Vianenses (Tomo II). Viana
do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 124-132.
BRANCO,
Camillo Castello, 19642 (1.ª ed. 1862): Memorias do Carcere (vol. I). Porto: Casa Viuva Moré – Editora.
----------,
19083 (1.ª ed. 1863): «Tramoias d’Esta Vida», em Noites de Lamego. Lisboa: Parceria Antonio
Maria Pereira; pp. 71-112.
CABRAL,
1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco.
Lisboa: Caminho. (2.ª ed., 2003).
PINHO, Isabel
Maria Ribeiro Tavares de, 2009: «As Carmelitas do Desterro de Viana do
Castelo», em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/9421.pdf (Consulta em
25-10-2013).
----------, 2010:
Os Mosteiros Beneditinos Femininos de
Viana do Castelo - Arquitectura
Monástica dos Séculos XVI ao XIX (2 vols.). Porto. (Dissertação de
Doutoramento em História da Arte Portuguesa apresentada à Faculdade de Letras
da Universidaxde do Porto), em: http://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/53882 (Consulta em
25-10-2013).
RODRIGUES,
David F., 2013: «Viana & Camilo – Presenças e situações». A Falar
de Viana (Vol. II, Série 2). Viana do Castelo: Vianafestas, pp. 205-213.
----------,
2013a: «Viana em Camilo: [“Tramoias d’esta Vida” (1863)]». Cadernos Vianenses, Tomo 47. Viana do Castelo: Câmara Municipal de
Viana do Castelo; pp. 113-127.
VIEIRA, José
Augusto, 1986/87: O Minho Pittoresco
(Tomo I e II). Valença: Rotary Clube de Valença; p. 3. (Reedição da 1.ª ed.,
1886/87, Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira).
[Continuará]