domingo, 22 de junho de 2014


010. Camilo & e os irmãos Barbosa e Silva [10]
          em O Vinho do Porto (1884) [II]


Além do que disse no post anterior, procuro fornecer, neste, mais alguns dados sobre quem terá sido a Gertrudes, personagem que figura em O Vinho do Porto – Processo de uma bestialidade ingleza (1884), de Camilo, a quem o Escritor crisma de Gertrúria. [Respeitarei, nas citações e transcrições, a grafia das edições consultadas.]
Gertrudes, argumenta o autor para a mudança do nome, «não sôa lyricamente a orelhas clássicas nem românticas», custando «muito aos melindres estheticos do meu espirito caprichoso em onomastica». [Branco, 1884: 38.] Além disso, Camilo chama-lhe também «madame Brillat-Savarin» [id.: ibid.], por, recordando então afamado cozinheiro francês, ela ser também «um tesouro de joias culinárias» [id.: 35]. Ela, por isso, «não tinha mãos a medir» [id.: 39], sendo frequentemente requisitada e requerida por bispos e abastadas famílias portuenses e arredores, para lhes preparar e dirigir lautas e refinadas refeições, na receção de ministros e outras figuras importantes. Os seus ricos e substanciais manjares eram de tal ordem que foi com eles que, em vez das boticadas médicas, ela, da noite para o dia, curou e livrou o jovem Camilo das portas da morte. O facto, porém, não foi suficiente para o Escritor lhe dedicar um «artigo necrológico». E porquê? Simplesmente – confessa – «por que ella me salvou como cozinheira» [id.: 76]. Cozinheira que, apesar dos seus dotes e qualidades culinárias, disso não passou, isto é, não subiu nem decaiu socialmente.

Apreciem, agora, a breve «genealogia» que da sua devotada amiga faz Camilo:

[Id.: 81-82. (Formato adaptado)]

 Este fragmento é apenas uma pequena amostra da descrição da cozinheira Gertrudes/Gertrúria. Mas, para saborear a graça e humor com que Camilo descreve os atos e pratos que ela confecionava, não há como ler O Vinho do Porto. Depois não resmunguem que não os avisei. Adiante, pois.

Alexandre Cabral é de opinião que esta Gertrudes/Gertrúria «bem pode ser uma transfiguração» de Eufrásia Carlota de Sá, «dedicada “amiga” do escritor» [Cabral, 1989: 664]. Luís Xavier Barbosa diz que Eufrásia foi «hospedeira de Camillo no Porto» [Barbosa, 1919: «Proemio», s/p]. Aquilino, por sua vez, regista que Camilo, quando chegou ao Porto, em 1848, ao procurar hospedagem, foi recebido por uma «criada tripeira da costa, desnalgada mas de ar bondosão, Gertrudes Engrácia, que ele crismou no Vinho do Porto, de acordo com as conveniências prosódicas ofendidas, por nome tão curriqueiro, em Gertrúria». [Ribeiro, 1961 (II): 10.]

Admitindo-se que a Gertrudes/Gertrúria seja uma «transfiguração» de Eufrásia, Camilo faz-lhe referência em cinco cartas que dirigiu ao seu grande amigo vianês José Barbosa e Silva (30/X/1828 - 15/IX/1865). Barbosa e Silva, segundo se viu no post anterior, foi presidente de uma «instituição carpideira», de que faziam parte Camilo e outros escritores, e que tinha por objetivo escrever artigos necrológicos sobre ilustres figuras ou como tal consideradas. Nessas cartas, porém, o Escritor nunca nomeia Eufrásia por Gertrudes ou Gertrúria.

As notas que se seguem, sobre quem foi Eufrásia, são colhidas, por um lado, na referida correspondência e, por outro, nas informações que sobre esta(s) personagem(ns) nos dá Alexandre Cabral [cf. 1984 (I) e 1989].

A primeira carta em que o Escritor se refere (referirá) a Eufrásia é datada de 3/V/1853. Nela escreve, a dado passo:

Eu vivo triste e . O espirito enojou-se com o m[ui]to pasto que lhe dei da m[es]ma impressão, e já não digere os indigestos carinhos da E. F. Estou, p[o]r tanto, viuvo, e preciso de segundas ou vigesimas (que sei eu!...) nupcias, aliás bestialiso-me. [Barbosa, 1919: 106. Também em Cabral, 1884 (I): 62, que, todavia, omite a palavra «carinhos».]

Eufrásia aparece aqui nomeada apenas pelas iniciais, prova de que o destinatário saberia de quem se tratava. Xavier Barbosa leu «E. F.», enquanto Alexandre Cabral lê «E. T.». E, a propósito, observa este reconhecido camilianista:
«A abreviatura E. F. deve indicar – presumimos – o nome de Eufrásia Carlota de Sá que, dizem os biógrafos, fora amante de Camilo.» Mas, continuando, aceita «a sugestão» de Xavier Barbosa [F. em vez de T.], «sobretudo depois das considerações que [este autor] traça nas Minúcias Camilianas.» [Cabral, 1984 (I): 62] Nesta obra manuscrita e depositada nos Reservados da Biblioteca Nacional [cf. Cabral, 1984 (I): 42], o organizador de Cem Cartas de Camilo «associa as iniciais [E. F.] à expressão a seu respeito utilizada por Camilo – “D. Eufrázia (La Forêt em 3.ª mão)”.» Cabral remete, a propósito, para a carta n.º 54, datável de setembro de 1856, onde Camilo associa Eufrásia a «La Florêt em 3.ª mão», como a seguir se verá. [Cabral, 1984 (I): 62. «La Forêt» e «La Florêt» aparecem assim escritas nas referidas cartas. Lapso de Camilo ou de Cabral? Não consegui apurar, ainda, quem teria sido essa  La F[l]orêt.]

Eufrásia Carlota de Sá «tinha casa de hóspedes na Rua do Bonjardim, onde o escritor viveu durante largos períodos. Camilo terá travado conhecimento com Eufrásia por volta de 1850 (no regresso de Lisboa, provavelmente) e com ela terá mantido relações íntimas. O manifestado fastio [expresso na carta], contudo, não foi razão de peso para se interromper a amizade recíproca, que se manteve inalterável.» [Cabral, 1984(I): 63].
No célebre Dicionário de Camilo Castelo Branco, Cabral fornece-nos mais alguns dados sobre a vida de Eufrásia e as suas relações de intimidade:
«A dona da casa dedicou-se tão entranhadamente ao novo inquilino [Camilo] que acabou por fazer parte da sua vida. Conhecia-lhe os segredos, os amigos e os problemas, sem excluir os sentimentais. Tratava-lhe das roupas e da saúde. Revelou maternal compreensão pelas “leviandades” do seu benjamim, sobretudo os amores adulterinos com Ana Plácido, em que representou um importante papel de alcoviteira. […] A “hospedeira integral” [como lhe chamou Aquilino] fazia de “correio” entre os dois amantes. / Apesar de proprietária de uma casa de hóspedes, de ter uma filha (Carlota se chamava), Eufrásia manifestou disponibilidade para acompanhar o escritor a Viana do Castelo (1857).» [Cabral, 1989: 577]

[Desenho de Júlio Pomar]

Em carta a José Barbosa e Silva, datável, segundo Cabral, de setembro de 1856 (a tal carta n.º 54) e a respeito das diligências efetuadas e/ou a efetuar pelo amigo vianês, sobre casa, recheio e sua localização em Viana [tema a postar, oportunamente], para onde Camilo tencionava vir morar, a fim de se dedicar, por inteiro, à redação de A Aurora do Lima, escreve o romancista, a dado passo:

Enquanto a móveis, se em Viana se vendem os indispensáveis para uma mobília económica, é mau governo levá-los de cá [Porto]. Se eu quisesse uma decoração rica, então sim; mas eu suspeito muito que, retirando tu de Viana, me retire eu também com a D. Eufrázia (La Florêt em 3.ª mão) assentada na entrecarga dos livros. [Cabral, 1984 (I): 114. Carta inédita, até 1984, não se encontrando reproduzida em Barbosa, 1919.]

Camilo parece estar decidido a vir para Viana, acompanhado da sua fidelíssima Eufrásia. Só que, em carta datável de 30/I/1857, o Escritor, depois de referir que se encontra «bem doente», tendo sofrido, em apenas quatro dias, «uma bronchite, uma indigestão, uma ameaça de gonorrhea inveterada, e uma febre que vaticina sezão», informa o amigo de que:

Está decidida a m[inh]a hida para Vianna. A Eufrazia não vai. Resolvo ir p[ar]a uma hospedaria. É onde se está mais commodo, e m[ai]s livre de cuidados. No estio talvez retire para o campo. [Barbosa, 1919: 32-33. Também em Cabral, 1984 (I): 143.]

O desejo de Camilo era, de facto, vir para Viana, mas sem dispensar Eufrásia, segundo reitera em carta datável de 8/III/1857. Mas não queria ter casa dentro do burgo. Sim, no campo, «nas margens do Lima», «onde heide fundar a minha deliciosa residencia, o meu sonho bucolico.» Por isso, conclui:

Quando fôr para o campo, mando ir a Eufrazia, e então vão d’aqui [Porto] os utensilios de caza.» [Barbosa, 1919: 40. Também em Cabral, 1984 (I): 152.]

Aproxima-se o dia em que Camilo chegará a Viana. Tal aconteceu, como se sabe, em 7/IV/1857. Em carta datada do dia 1, o Escritor diz a José Barbosa e Silva: «Estou desesperado de me ver d’aqui fora.» Só que Camilo, como se sabe, tinha uma filha – Bernardina Amélia [Castelo Branco de Carvalho (1848-1931)] – fruto da sua ligação adulterina [era ainda casado com Joaquina Pereira de França (1826-1847) quando se deu a  estas relações] com Patrícia Emília do Carmo de Barros (1826-1885). Por isso, além da casa, dos móveis, dos livros, do cão, do cavalo, a quem deixaria ele entregue a pequena Bernardina, com apenas 9 anos de idade? Nesta última carta, Camilo informa o amigo a tal respeito:

A m[inh]a filha por em q[uan]to fica em casa de D. Eufrazia. Depois, veremos. [Diz a D. Eufrázia que já falou a dois escudeiros, está esperando informações das casas onde estiveram para depois te propor as condições do ajuste. Ambos eles são galegos – não sei se simpatizas com a nacionalidade dos tais… Caso não queiras, avisa.] [Barbosa, 1919: 44, amputada da parte que Cabral transcreve entre parênteses retos, 1884 (I): 156-7.]

Acerca da infância da filha de Camilo, informa Cabral: «Dadas as circunstâncias e os costumes da época, a criança foi exposta na roda de Vila Real. Depois da separação dos pais, a menina viveu com a mãe e mais tarde com Camilo, na verdade com Isabel Cândida Vaz Mourão, freira do Convento de S. Bento da Ave-Maria, do Porto, que, como se sabe, mantivera relações amorosas com o romancista.» [Cabral, 1989: 27-28]

[Bernardina Amélia à janela do convento]

Breves notas biográficas da hospedeira Eufrásia Carlota de Sá e da freira Isabel Cândida Vaz Mourão, aos cuidados de quem Camilo entregou a educação da filha Bernardina Amélia, encontram-se também em Figueiras, 2010: 245. O autor biografa, ainda, outras mulheres que, entre 1848 e 1858, «não faltaram a Camilo».

A cozinheira Gertrudes/Gertrúria de O Vinho do Porto – Processo de uma bestialidade ingleza (1884) pode ser uma «transfiguração» da hospedeira Eufrásia Carlota de Sá. Mas, na  descrição de sua vida e ações, podem e devem entrar propriedades e características, mais ou menos ficcionadas, de outras mulheres que o Escritor conheceu e com quem terá convivido. Tal Gertrudes Engrácia, assim propriamente chamada ou com outro nome, pode ter sido uma «criada» da hospedeira, como observa Aquilino.
Uma coisa é certa, porém: na vida do Escritor houve, de facto, uma mulher chamada Gertrudes, na mesma década de 1850. Chamou-se Gertrudes da Costa Lobo e foi uma jovem que se apaixonou por Camilo (bem como por outros escritores), a quem dirigiu cartas e poemas, deixando ainda um diário amoroso. Esses “cadernos” foram cuidadosamente escondidos pelo Escritor e encontrados depois da morte de Ana Plácido, «num “falso” que existia junto do leito de Camilo no seu quarto de cama, entre poeirentos objectos, mutilados e inúteis» [Sebastião de Carvalho, em Teles, 2007: II]. «Os cadernos desse diário de paixão estiveram na mão de Camilo, que os ordenou com alíneas a), b), c), etc., e onde ele deixou, firmado pelo seu próprio punho, o traço que nos revela o mistério amoroso que o envolveu de 1850 a 1857.» [Id.: ibid.] Segundo Manuel Simões (artigo «Um importante espólio camiliano»), citado por Manuel Tavares Teles, a «correspondência e o diário» desta jovem Gertrudes constituem «a fonte» do romance Memórias de Guilherme do Amaral (1863). [Cf. Teles, 2007: III]

Mas esta Gertrudes é outra história, das muitas paixões por que passou Camilo. A ela voltarei, em post(s) fururo(s), se em Os Manuscritos Gertrudes – Uma portuense apaixonada por Camilo, Manuel Tavares Teles me oferecer dados que se enquadrem nas relações de Camilo com Viana ou de Viana com Camilo. Já agora, saiba-se ou recorde-se que, no Anátema (1850, em folhetim; 1851, em volume), primeiro romance de Camilo, também há uma Gertrudes, «criada» de um fidalgo femeeiro, conde Cristóvão da Veiga, que dela também quis fazer serva de/para todos os serviços.



Leituras:
BARBOSA, L. Xavier (coord. e org.), 1919: Cem Cartas de Camillo. Lisboa / Rio de Janeiro: Portugal-Brasil Limitada.
BRANCO, Camilo Castelo, 1884: O Vinho do Porto – Processo de uma bestialidade ingleza. Porto: Livraria Civilização. (Uma edição recente foi publicada em 2005, com pref. De José Viale Moutinho, pela Colares Editora.)
CABRAL, Alexandre, 1984 (I): Correspondência de Camilo Castelo Branco com os Irmãos Barbosa e Silva (vol. I). Lisboa: Horizonte.
------------, 1989: Dicionário de Camilo Castelo Branco. Lisboa: Caminho.
FIGUEIRAS, Paulo de Passos, 2010: «Camilo e Ana Plácido – Alguns factos inéditos da sua vida», Cadernos Vianenses (Tomo 44). Viana do Castelo: Câmara Municipal de Viana do Castelo; pp. 229-255. Também disponível AQUI.
RIBEIRO, Aquilino, 1961: O Romance de Camilo (2 vols.). Lisboa: Bertrand.
TELES, Manuel Tavares, 2007: Os Manuscritos Gertrudes – Uma portuense apaixonada por Camilo. Lisboa: Guerra & Paz.


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